depois de um salto de fé

Pedro Rui Sousa // Dezembro 9, 2021
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salto de fé
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Tenho caminhado na avenida de Setúbal sobre o rio. As esplanadas cheias e o sol que brilha dia após dia acompanham-me há semanas, mais de um mês. No cimo do monte vejo o forte, do outro lado do rio alguns prédios e ao meu lado pescadores que não param de pescar. Talvez parem, não sei – tal como não sei se as pessoas que almoçam nos restaurantes são sempre as mesmas.

Mudo de casa pela enésima vez e o trabalho de readaptação terá de recomeçar – ainda não sei onde.

No último sábado passei uma noite num hotel do outro lado do rio, em Tróia, e o meu passeio mudou – os prédios deixaram de ser um mistério, são apenas prédios aos quais associo uma memória e não uma fantasia. Na avenida encontrei rotinas, conforto e inclusive um ginásio, mas amanhã parto. Mudo de casa pela enésima vez e o trabalho de readaptação terá de recomeçar – ainda não sei onde.

Já não sou quem pensava ser.

Fez este mês um ano que deixei Hong Kong, com a mulher de vestido vermelho, em busca de uma nova vida. Neste processo em que estou desenraizado e a viver diferentes vidas em lugares distintos, tenho-me apercebido de que já não sou quem pensava ser. Estou a redescobrir quem sou a cada dia, a atualizar a história que vou contando sobre mim próprio em cada limitação que ultrapasso com a plena noção de que o processo se vai prolongar enquanto estiver vivo.

A necessidade de explorar o que me rodeia acaba por me fazer descobrir a mim próprio.

Na verdade, a necessidade de explorar o que me rodeia acaba por me fazer descobrir a mim próprio. No primeiro mês que passei na Ucrânia – país da minha esposa – fui com frequência a um clube com banho turco. Suei e saboreei o tempo que lá passei, e à saída da sala observei quem me rodeava a virar um balde de água gelada na cabeça. Eu, por oposição, seguia para o aconchego do sofá – sempre preferi o conforto do expectável. Um dia, um guia turístico disse-me que precisava de soltar um grito.

Neste período de transição sem casa nem rotina, mas com a intensidade de trabalho de quem assumiu um risco, decidi fazer parte de um grupo de suporte masculino em que problemas são partilhados e diferentes práticas sugeridas para cultivar uma atitude aberta e positiva para com as solicitações da vida. Numa das sessões o duche frio foi recomendado como exercício diário. Não permitas sequer considerar não o fazer – alguém disse. Nesse final de dia, à saída da sala húmida não hesitei e sem pensar virei o balde de água gelada na cabeça – inspirei fundo e algo mudou.

Inspirei fundo e algo mudou.

O frio passou a ser o meu mestre todas as manhãs. Sinto a água a escorrer na minha pele e no tempo que o duche dura as sensações do meu corpo inibem pensamentos. É um ritual que me acompanha e me ajuda a enfrentar o inimigo que vem de dentro – a dúvida, a hesitação ou o desejo de regresso a um passado que com a distância começa a ser idealizado.

O que fazer depois de um salto de fé?

Nós optamos por deixar a Ásia apesar da qualidade de vida, de uma remuneração estável e do sucesso da nossa marca de retiros transformacionais para encontrarmos uma casa, uma terra para criar raízes e expandir. Ainda não a encontramos, e depois de vários meses na estrada pergunto porque nunca perguntei a alguém o que fazer depois de um salto de fé.

Uma parte de mim espera a queda, outra o fim do salto e uma outra que ele nunca tivesse existido. O frio, o duche de água fria, ensinou-me que o salto de fé é diário – sem hesitação e com tudo o que sou.

O salto de fé é diário. 

No processo, vou descobrindo cidades e partes de mim que desconhecia.

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