Não deixa de ser curioso, e um pouco irónico, que a ideia de um conflito inevitável entre agricultura e floresta continue a resistir ao tempo. A meu ver, trata-se de um mito com barbas. Para o compreender, é preciso recuar milhares de anos, até à alvorada da nossa civilização, quando o mundo se dividia entre caçadores-recolectores e agricultores, cada qual a projectar nos deuses formas opostas de ver a vida: uns veneravam a floresta e os seus habitantes selvagens; os outros, os campos e as colheitas. Passaram mais de dez mil anos. E com tudo o que temos em mãos – clima, biodiversidade, território – insistir nesse antagonismo é mais do que anacrónico: é pobre, é pouco imaginativo, é não ver as pontes que hoje, mais do que nunca, precisamos de atravessar entre o campo e o arvoredo.
Mas convém não ficarmos apenas pela metáfora ou pela nostalgia civilizacional. Se descermos ao terreno dos dados e da realidade atual, o quadro é bem mais matizado e surpreendente, para quem ainda vê na agricultura o inimigo natural da floresta.
A desflorestação – ou a fragmentação e redução da área florestal – é frequentemente apresentada como uma das principais ameaças ambientais da atualidade, associada à perda de biodiversidade, à degradação dos solos e às alterações climáticas. No entanto, a conversão de floresta em terras agrícolas nem sempre é o principal motor deste fenómeno, e quando o é ocorre em contextos muito específicos.
A relação entre agricultura e a desflorestação é complexa e exige uma análise ponderada.
Em algumas regiões do mundo – nomeadamente na Amazónia, na Bacia do Congo e no Sudeste Asiático – a conversão de florestas tropicais em terrenos agrícolas é, de facto, uma das principais causas da perda florestal. No Brasil, por exemplo, o avanço da agropecuária continua a ser um dos grandes impulsionadores da destruição florestal, alimentado pela procura global por carne bovina e soja. De forma semelhante, a Malásia e a Indonésia têm assistido à conversão de vastas áreas de floresta tropical em plantações de palma, destinadas à produção de óleo.
Contudo, em muitas outras partes do mundo, incluindo na Europa, a tendência tem sido inversa.
De acordo com dados do Eurostat, entre 1990 e 2020, a área florestal da União Europeia aumentou em cerca de 14 milhões de hectares — o equivalente a aproximadamente 140.000 km², uma área superior à da Grécia ou aos territórios de Portugal e Eslováquia juntos. Este crescimento representa um acréscimo de cerca de 10% na cobertura florestal europeia nas últimas três décadas. Este fenómeno tem sido por vezes descrito como uma inversão de séculos de desflorestamento, mas essa leitura requer alguma nuance histórica. Até ao surgimento dos combustíveis fósseis — com destaque para o petróleo no final do século XIX — a principal fonte de energia doméstica e até industrial era a madeira. Florestas inteiras eram abatidas para alimentar fornos, lareiras, caldeiras e pequenas indústrias. Este padrão de consumo de madeira, combinado com a expansão agrícola e demográfica, levou à degradação florestal generalizada na Europa.
Prova disto são múltiplas obras de pintura paisagística entre os séculos XVI e XIX, de artistas como Jacob van Ruisdael, Claude Lorrain ou mesmo os pintores românticos britânicos, que retratam colinas despidas de árvores, campos cultivados até ao limite, ou vales totalmente desmatados. Locais que hoje reconhecemos como densamente florestados — como partes do sul da Alemanha, norte de Itália, ou certas regiões de França e da Península Ibérica — surgem nestas obras como territórios essencialmente agrícolas ou pastoris. As florestas atuais são, muitas vezes, florestas de retorno, formadas sobre terras outrora utilizadas na agricultura e pastorícia.
O regresso da floresta na Europa não pode ser atribuído exclusivamente às políticas ambientais da União Europeia, embora estas tenham tido um papel relevante, nomeadamente através da Política Agrícola Comum (PAC) e do Pacto Ecológico Europeu (Green Deal). Este último integra a Estratégia de Biodiversidade da UE para 2030, que prevê, entre outras metas, a plantação de 3 mil milhões de árvores até 2030, com critérios ecológicos rigorosos. Esta ação visa melhorar a biodiversidade, aumentar o sequestro de carbono e reforçar a resiliência dos ecossistemas.
Para além da ação política, os avanços da genética e biotecnologia na produção vegetal e animal, do início deste milénio, contribuíram para a libertação de áreas agrícolas.
Culturas mais produtivas, adaptadas a diferentes climas, e animais com melhor conversão alimentar reduziram a pressão sobre o território. Em consequência, muitos dos terrenos agrícolas necessários até a um passado recente, têm sido alvo de reflorestação natural ou planeada.
Contudo, é crucial sublinhar que mais floresta não significa, necessariamente, melhor floresta.
O abandono agrícola tem levado à proliferação de florestas homogéneas e pouco resilientes, com espécies como o eucalipto ou o pinheiro-bravo. A falta de gestão ativa aumenta o risco de incêndios e a perda de diversidade funcional. E Portugal conhece bem este dilema: quando o verde se instala sem critério, o que cresce não é uma floresta, é combustível à espera de uma faísca.