“Há quatro coisas que não voltam atrás: a pedra atirada, a palavra dita, a oportunidade perdida e o tempo que passou.”
Autor desconhecido
Quando me desafiaram a pensar no que seria importante num texto sobre comunicação não violenta, lembrei-me desta afirmação e de como as palavras ditas com a cabeça quente e sem pensar, magoam profundamente.
Aliás há investigação suficiente sobre Experiências Adversas na Infância que salientam os danos profundos que as palavras provocam na construção da identidade de uma criança, podendo prejudicar a confiança nas suas competências independentemente de se comportar (ou não) adequadamente. É comum termos alguém nas nossas relações que é impecável, boa pessoa, suficientemente inteligente para prosperar em todas as áreas da sua vida mas que duvida constantemente do seu valor, convicta de que nada do que faz está bem (dica: se não encontram essa pessoa no vosso meio, provavelmente são vocês).
Deste modo, a comunicação não violenta é absolutamente vital para manter os nossos ambientes protegidos de momentos em que, por muito que nos esforcemos, vamos ser atingidos por algo que desvaloriza quem somos …
Como diz o escritor, “viver todos os dias, cansa” e gerir tudo o que nos acontece e todas as exigências que a vida no século XXI nos impõe é, por si só, extenuante. Ambientes inseguros em que não podemos simplesmente ser quem somos cansam ainda mais.
Ao partilhar com alguém (e que respeito muito a opinião), o entusiasmo sobre o tema deste artigo, foi-me sugerido que falasse da agressividade-passiva… Em que para além de tudo o que foi dito antes, ainda somos expostos à incerteza sobre se o que foi dito é ou não agressivo. Por vezes essa dúvida retira-nos a possibilidade de devolver a agressividade à origem, uma vez que a comunicação passiva-agressiva pauta-se por ser ambivalente (“sim, mas…”), disfarçada de elogio (“tu até és uma pessoa inteligente, não percebo como fazes uma coisa destas”) , vaga (“tu sabes perfeitamente do que é que estou a falar e mais não digo”) e não explícita, deixando-nos a matutar sobre o que poderemos ter feito ou dito para causar tal comentário (bem como o mal-estar que não o larga), com muitos silêncios, vulgarmente conhecidos por amuos. Agradeci a sugestão dado que a agressividade-passiva contribui muito para o desconforto continuado nas relações pessoais e profissionais. Sendo passiva, esta forma de violência passa despercebida, embora seja um veneno social.
Como nos podemos proteger da agressividade passiva?
Enquanto organizava as ideias que queria transmitir sobre como nos proteger da agressividade-passiva senti-me desconfortável… Revi-me em muitas frases que lia nos textos que consultava sobre o tema. Até a ironia, que me agrada tanto usar, pode facilmente resvalar para o sarcasmo, o qual pode ser uma das formas privilegiadas de comunicação passiva-agressiva: ai, ai, ai, afinal é muito fácil sermos passivo-agressivos… E quem nunca amuou, que atire a primeira pedra!
Reformulei o objetivo das ideias a transmitir: como pode cada um de nós – depois de “arrumar” a sua casa interna – proteger os outros da nossa agressividade-passiva e, depois, como neutralizar a agressividade-passiva dos que nos rodeiam?
O grão de areia no olho do próximo e a trave no nosso olho
Em Mateus, cap. 7, versículos 3 a 5, no famoso Sermão da Montanha, Jesus adverte que em vez de nos preocuparmos pouco com o que vemos no outro e com tudo o que ignoramos que obstrui a nossa visão, devemos primeiro tratar de nós ao invés de resvalarmos para a hipocrisia.
Este princípio de responsabilidade sobre a nossa ação no mundo é um tema bastante valorizado na psicoterapia: é usual não termos controlo sobre o que nos rodeia, mas podemos controlar como atuamos no mundo. E abdicar do nosso poder sobre o mundo deixa-nos à mercê do que acontece e de pessoas que não nos respeitam… É um risco muito elevado.
Relembremos: a agressividade-passiva é uma forma de dizermos o que pensamos, mas sem a coragem da frontalidade e honestidade.
Na maioria das situações não o fazemos propositadamente, principalmente se tivermos aprendido a temer o confronto ao longo da nossa vida, em especial na infância. E se às vezes faz sentido protegermo-nos, outras vezes temos de assumir o que sentimos e pensarmos nas nossas relações. Se sistematicamente não explicitamos o que queremos dizer, recorrendo a indiretas, sarcasmo ou amuos, podemos estar a praticar a agressividade-passiva. E como distinguir se é altura de nos protegermos ou de encher o peito e dizer o que vai cá dentro? Dois bons guias de ação são o contexto da relação e o momento em que acontece algo passivo-agressivo.
– No amor:
As nossas relações amorosas dão trabalho, e adotarmos uma atitude de frontalidade constante também as desgasta. No entanto, para que a relação cresça, temos de dizer o que sentimos verdadeiramente, de forma clara e transparente, mesmo que isso implique confronto e desconforto… Custa, mas pelo menos a relação cresce na “verdade emocional”, ao invés de ser um labirinto do que fica por dizer e na dúvida se percebemos bem o que se passou. Um exemplo disso é a frase: “tu sabes bem do que é que estou a falar, és sempre a mesma coisa… e não quero falar disso”. Não temos de ir a todas as batalhas, mas há algumas que temos de enfrentar. Pode ser em relação à forma como o dinheiro é gasto, escolhemos passar o tempo livre ou como são geridas as tarefas domésticas, mas há momentos em que temos de dizer claramente o que queremos.
– Na amizade:
A amizade é a família que se escolhe, com quem partilhamos afinidades. Frequentemente, devido à antiguidade da relação ou ao “feitio especial” daquele amigo, falhamos em pôr limites a quem nos desvaloriza, está cronicamente indisponível ou só aparece quando precisa… E aqui avaliem se são apenas os outros ou se há situações em que somos nós o amigo que não está presente, que sistematicamente tem uma ferroada para distribuir ou (ab)usa da amizade. Creio que na maior parte dos casos estamos nos dois lados – afinal e citando uma frase das redes sociais: “Todo o mundo é tóxico, menos você, né, alecrim dourado que nasceu no campo sem ser semeado”.
– No trabalho:
Está por fazer a contabilidade dos “sapos” diariamente engolidos ao redor do planeta por causa de um colega com uma maneira de ser insidiosamente desrespeitadora, disfarçada por frases como “ai, também és tão sensível, estava só a brincar”, ou ações em que falha uma tarefa para manter um controlo encapotado do que se passa no local de trabalho… Na minha contabilidade “nasal”, cheira-me que são muitos, mas mesmo muitos. Porém, antes de se queixarem verifiquem quantos “sapos” já fizeram engolir.
O privilégio de ser adulto
A palavra “adulto” tem má reputação uma vez que muitos associam este conceito a ser chato, velho, alguém que se rendeu à rotina, que se deixou engordar e desistiu de sonhar. Não aceito esta definição porque sou uma adulta cronológica e quero manter algum glamour na minha vida.
Numa formação cruzei-me com o Arun Mansukhani, um psicólogo espanhol que definiu o estado de adulto como alguém que possui competências para agir responsavelmente, externa e internamente, sendo capaz de:
- Acalmar-se e regular-se e a si e aos outros, aceitando ser acalmado e regulado por outras pessoas sem se sentir menorizado;
- Está em contato com suas necessidades e empatiza com as necessidades dos outros;
- Contata com suas emoções, sem se deixar dominar por elas;
- Sintoniza-se com as emoções dos outros sem ficar sobrecarregado ou fugidio;
- Não age de acordo com os medos de criança, sendo compassivo, autocompassivo e realista sobre o que esperar de si e dos outros;
- Estabelece limites saudáveis para si e para os outros, e evita reagir quando está cansado, irritado ou magoado;
- Compreende e admite erros, pede desculpas e repara ruturas nas suas relações.
Saliente-se que o estado adulto não é um estado contínuo. Ninguém tem todas as características anteriores e age de acordo com elas a tempo inteiro, uma vez que tal é impossível. Mas quase todo o adulto cronológico pode manifestar algumas das características acima descritas, cultivá-las e ampliá-las. Assim, perante situações em que normalmente atuamos de forma passiva-agressiva, podemos ensaiar um estado adulto, gerindo as palavras que dizemos e a forma como as dizemos. Caso tenhamos de enfrentar um momento em que somos alvo de agressividade-passiva, lembremo-nos que um adulto por vezes define-se como aquele que fala o que é necessário dizer, assumindo que o resultado pode ser desconfortável, mas ainda assim avança com firmeza.
Acima de tudo, lembremo-nos que a comunicação não violenta depende de todos e começa connosco, porque o único ser humano que conseguimos gerir e controlar somos nós próprios.