As vantagens de viver no século XXI são imensas, mas uma delas é o luxo de podermos dedicarmo-nos a nós e alcançar níveis satisfatórios q.b. com a pessoa que somos e aquilo que conquistamos.
É frequente no consultório sucederem momentos em que o paciente adquire uma nova compreensão de si próprio e consegue deixar o passado no passado, permitindo-se viver mais no tempo presente e aceitando o que de bom lhe acontece.
Passado cronológico vs. passado psicológico
Uma mãe dizia-me, com embaraço, como às vezes sentia inveja (sim, é mesmo esta a palavra, inveja) da filha de 17 que tinha acesso a férias na praia, na neve, iria certamente fazer o programa Erasmus e já saía à noite. Aprisionava-se naquele dilema (chamo-lhe “guerra civil”) de se alegrar por conseguir proporcionar todas essas benesses à filha e ainda assim sentir um mal-estar decorrente do sofrimento vivido na sua própria adolescência – sem dinheiro para comprar as calças de marca que todas as amigas tinham e com uns pais austeros que só depois da faculdade é que permitiram que fosse a uma discoteca.
“Às vezes oiço-me a falar e pareço a minha mãe! Faço birras quando o meu marido dá mais atenção à miúda do que a mim… Tento controlar-me e não consigo.”
Neste caso o passado cronológico ainda é diferente do passado psicológico; ou seja: a adolescente reprimida e com poucos recursos financeiros, que habita a adulta mãe de uma adolescente, ainda existe no presente. Inconscientemente, a adulta de 45 anos que está à minha frente ainda não fez as pazes com o que não teve no seu passado.
A lamúria de si mesmo
O conceito “mourning the self” (a lamúria de si mesmo) traduz o TPC – Trabalho Psicológico Criativo – necessário para que o passado cronológico sincronize com o psicológico.
No caso anterior, onde a mãe se sente culpada por sentir inveja da filha, é importante que contatemos com as necessidades que ficaram por preencher na idade da adolescência, tais como: a diversão, a expansão de horizontes, o cimentar amizades, o treino de responsabilidade individual. Para tal, é importante que esta mãe se questione:
- O que eu poderia ter sido caso tivesse a liberdade de explorar quem era?
- Que aventuras ficaram por viver?
- Teria escolhido a mesma carreira profissional?
- Viveria em Portugal?
- Teria escolhido constituir família?
Há fases em que este TPC pode ser frustrante para o próprio uma vez implica aceitar que determinadas condições se perderam para sempre. Por exemplo, beber uns copos a mais e falhar algumas responsabilidades aos 18 anos não tem o mesmo impacto do que ter o mesmo comportamento aos 40.
Surgem, então, sentimentos de irritação, tristeza, culpa e rancor que se analisam, integram e acalmam no espaço terapêutico. O TPC finda perante sinais de acalmia interna e capacidade de falar sobre o que não se teve a partir do ponto de vista de aceitação do seu percurso de vida. Essa integração liberta-nos para encontrarmos paz interna. A aceitação também dá espaço para ver as vantagens de termos tido aquele percurso de vida:
- Tornou-me mais tolerante à frustração?
- Mais foco em alcançar objetivos?
- Mais gratidão perante o que se alcançou?
A partir desta aceitação crescemos na nossa sabedoria sobre o modo como o mundo funciona e não como desejaríamos que funcionasse.
A sabedoria que só se alcança através da experiência e reflexão acerca do que vivenciamos.
Ficou com curiosidade? Deixo aqui uma sugestão de TPC:
Há alguns momentos nas nossas vidas que mexem naturalmente com o nosso passado cronológico e psicológico, e que podem desafiar-nos a aceitar coisas na nossa vida: a época natalícia, o nosso aniversário, as férias, mudar de casa e/ou de emprego, terminar uma relação, apaixonarmo-nos. Nestes momentos alguns fantasmas do passado podem voltar para nos criticar acerca de alguma coisa que fizemos ou não fizemos. Contate com essa situação, sensação, pensamento e permita que se expresse no seu corpo (em outro momento já apresentei um tutorial de como o fazer).
Se surgiu alguma coisa que o frustra, que traz arrependimento ou que percebe que já não há nada a fazer, imagine o que gostaria de dizer ou fazer a essa frustração/arrependimento/oportunidade perdida. Se ajudar, imagine que lhe escreve um email, uma sms, fala ao telefone com isso e lamente o que perdeu ou exagerou. Tire alguns momentos para sentir o que acontece no seu corpo, e integre isso. Estar na companhia de um café, chá, copo de vinho, uma paisagem agradável ou uma música que gosta, ajuda muito neste contato com o passado e regresso ao presente.
Se tivesse de sugerir uma música para este momento seria, sem dúvida: “Non, Je Ne Regrette Rien” (Não, não lamento absolutamente nada), de Edith Piaf.
“Não absolutamente nada
Não, eu não lamento nada
Nem o bem que me fizeram
Nem o mal, isso tudo me é indiferente
Não absolutamente nada
Não, eu não lamento nada
Está pago, varrido, esquecido
Não me importa o passado!
Com as minhas lembranças
Acendi o fogo
Minhas mágoas, meus prazeres
Não preciso mais deles
Varridos os amores
Com todos os seus tremores
Varridos para sempre
Vou recomeçar do zero
Não, absolutamente nada
Não, eu não lamento nada
Nem o bem que me fizeram
Nem o mal, isso tudo me é indiferente
Não, absolutamente nada
Não, eu não lamento nada
Pois a minha vida, pois as minhas alegrias
Hoje, isso tudo começa contigo!“