Em tempos de pandemia, de confinamento, de restrições e incertezas é normal haver uma maior dificuldade com a regulação emocional e que vejamos um aumento de birras (tanto por parte dos pais, como por parte dos filhos). Mas, afinal o que é exatamente uma birra? E como lidar com as birras?
Uma birra é uma desregulação emocional intensa. A criança perde a capacidade de lidar com as suas emoções (de forma socialmente apropriada) e na realidade não é nada estranho.
O nosso cérebro desenvolve-se de baixo para cima, da parte mais antiga para a parte mais recente, e essa informação interessa muito quando estamos a falar de birras e regulação emocional.
Simplificando, a parte mais primitiva do cérebro é o que desenvolve primeiro, o chamado cérebro reptiliano. Essa parte do cérebro controla o básico para a sobrevivência: frequência cardíaca, temperatura corporal, pressão arterial e outras características relacionadas à sobrevivência. Depois vem o cérebro límbico que é onde vivemos as nossas emoções (e é onde muitas crianças vivem a maior parte do tempo). Finalmente, temos o córtex, que controla o pensamento abstrato, a memória cognitiva e a capacidade de refletir e raciocinar.
Este conhecimento é importante termos como cuidadores de crianças quando queremos apoiar o seu desenvolvimento socioemocional, para que possam aprender a ter as suas necessidades atendidas de forma saudável. Sermos capazes de fazer uma ligação entre os comportamentos que vemos do lado de fora ao que está a acontecer do lado de dentro permite-nos lidar com os nossos filhos de uma forma diferente do que quando apenas acreditamos que temos de corrigir um “mau” comportamento.
À medida que crescemos o nosso cérebro desenvolve junto com outras “funcionalidades” incríveis do nosso corpo.
Nomeadamente a “neurocepção”, um termo criado pelo cientista americano Dr. Stephen Porges. A nossa neurocepção é condicionada e “programada” mediante as experiências que vivemos e avalia a toda a hora se o contexto onde nos encontramos é seguro, inseguro ou se existe perigo de vida. Mediante essa avaliação inconsciente, temos uma reação e a desregulação ocorre quando respondemos à interpretação da neurocepção de uma forma que dispara o estado de alarme.
Um adulto que observa as birras de uma criança habitualmente pensa que é um disparate e que não há necessidade de haver aquela reação.
No entanto, a nossa opinião como adulto interessa pouco, pois, a criança está a reagir em função de um processo interno que ela não controla. A neurocepção e todas as funcionalidades ligadas a ela existem para nos proteger de ameaças e garantir a nossa sobrevivência e a avaliação, não depende do que nós, como adultos, achamos, mas da forma como nos estamos a relacionar com a criança. A criança pode nos interpretar como perigosos ou como alguém que oferece segurança e quanto mais conscientes estivermos disso, melhor.
Mas, afinal o que são exatamente as birras? O que significam?
Quando uma criança faz uma birra, quer dizer que ela desligou a parte do cérebro onde ocorre o pensamento lógico (no córtex) e que está a agir a partir das partes inferiores, ou seja, que entrou num estado de luta ou fuga. Assim, a criança está menos perceptiva do tempo, menos cognitiva, mais reativa e muito mais emocional. Ou seja, a criança não consegue ouvir, aprender ou compreender o que lhe estamos a dizer. A maioria dos adultos, infelizmente, não tem este conhecimento tão determinante.
Então, o que podemos fazer perante uma birra?
Se a nossa intenção é praticar uma parentalidade consciente e proporcionar um desenvolvimento socioemocional saudável, então vamos optar por seguir os 3 R´s do neurocientista Dr Bruce Perry:
- Regular: Quando a criança está desregulada (a fazer uma birra), o adulto precisa de se manter regulado. O nosso sistema nervoso é altamente influenciável pelo sistema nervoso dos outros. Isso significa que a desregulação da criança nos pode desregular também a nós, a não ser que tenhamos consciência disso e utilizarmos o processo ao nosso favor, mantendo-nos regulados para a criança poder co-regular-se connosco. Isto na prática pode ser um desafio. Respirar, ter paciência, não julgar e aceitar a situação e a criança como ela é, é o que temos a fazer para nos mantermos regulados no momento. Colocarmo-nos ao nível da criança fisicamente, falar com uma voz suave (com poucas palavras e nada de complexo, tal como: “eu sei, estou aqui”…), fazer uma festa ou abraçar (se a criança aceitar), estar plenamente presente, são os passos a seguir. A intenção aqui é fazermos com que a criança se sinta segura, calma e amada para podermos passar para o segundo passo;
- Relacionar: Quando a criança acalmar podemos começar a falar, a reconhecer e validar o seu estado falando um pouco mais. “Eu sei, é muito difícil para ti, querias muito…”; “Eu sei que estas coisas são super chatas…”. Tendo sempre em atenção o tom de voz e a linguagem não verbal, que devem ser suaves e calmos para manter a sensação de segurança, calma e amor;
- Refletir: Aqui a criança tem de estar novamente com o cérebro todo “ligado”. Ou seja, já vai conseguir pensar sobre o que aconteceu de uma forma mais lógica. Agora ela já consegue aprender e fazer diferente. Podemos falar sobre estratégias de como lidar com situações parecidas, sobre emoções e necessidades.
Para muitos adultos este método é bem desafiante.
Temos as nossas próprias histórias influenciadas pela nossa experiência de vida e as nossas crenças. As birras funcionam como gatilhos fortes de questões ainda por resolver em nós. Sensações de insuficiência, a busca de dignidade e controlo, a sensação de ser desrespeitado surgem… E a nossa primeira reação é tentarmos ganhar controlo da situação e da criança discutindo com ela, e, como não funciona, as coisas escalam, aparecem os gritos, a humilhação a punição… Parece que só o castigo ou a palmada é que põem fim a situação, e até podem pôr, a questão é, a custa de quê?
As estratégias que fazem com que a criança se “renda”, no ponto de vista cerebral e de sistema nervoso, geram ainda mais medo.
A neurocepção não deteta apenas perigo, mas até ameaça de vida. A criança só tem acesso ao cérebro reptiliano, e tal como um réptil com muito medo, “congela”, entra num estado de shutdown e desiste de se tentar defender, pois tornou-se demasiado perigoso. Ela não aprende a autorregular, não aprende sobre emoções e sobre satisfação de necessidades de uma forma saudável, não aprende a relacionar-se bem com os outros. Sente-se mais insegura, sozinha, inadequada e desconectada de ti.
Um berro, colocar a criança de time out ou dar uma palmada podem eventualmente por fim mais rapidamente à birra, mas ao utilizarmos técnicas de regulação que nos permitem construir relacionamentos saudáveis, o número de batalhas diminui imensamente.
Pois, na parentalidade consciente, sabemos que a solução está na relação e uma abordagem baseada na criação de relações saudáveis ajuda o teu filho a tornar-se capaz de refletir sobre o seu comportamento, as suas emoções e as suas necessidades junto contigo, ajuda-o a sentir-se seguro, ajuda-o a compreender e a saber colaborar quando isso é bom para ele e para os outros. Uma criança que consegue manter o cérebro todo ligado será capaz de tomar melhores decisões, será melhor a satisfazer as suas necessidades de forma saudável e terá a capacidade de contribuir para relações realmente felizes.