A gravidez é um momento único por muitos motivos. É um grande salto para um sítio de antecipação, sonhos, esperança, mas também de medos. E se não correr bem? E se o bebé tiver problemas? Ter um filho saudável é o maior Euromilhões que podemos ganhar. Mas como o garantimos? Será que o conseguimos fazer?
Os riscos na gravidez
Em todas as gravidezes há riscos. Riscos por doença materna (como diabetes ou úteros anómalos), risco por toma de fármacos que podem afetar a embriogénese (como o valproato de sódio, usado na epilepsia), riscos por fatores ambientais (como radiação). E há riscos genéticos!
Sou médica de Genética e vou tentar explicar-te estes.
A informação genética: o nosso manual de instruções
A informação genética é a nossa essência. São as instruções para tudo o que somos, que nos tornam únicos, mas também iguais a todos os outros. Os humanos partilham 99% da informação genética, porque as regras para o nosso funcionamento são muito importantes e admitem poucas alterações.
Quando falamos em doença genética, falamos em alterações destas instruções. As instruções (o nosso ADN) estão arrumadas em grandes enciclopédias de informação (os cromossomas), e podemos ter doença que resulta de uma alteração no número das enciclopédias (como a trissomia 21), por páginas rasgadas, linhas rasuradas ou apenas uma palavra, daquelas importantes, escrita de forma errada.
Na gravidez, há risco de malformações ou doença por alterações em todos estes: número de cromossomas, deleções ou duplicações de pequenas partes e alterações num só gene. Comecemos por estas últimas.
Doenças recessivas e compatibilidade genética
“– Doutora, o meu grupo de sangue é A e o do meu marido é 0. Somos compatíveis?”
Não são raras as vezes que me fazem esta pergunta em consultas de Genética Médica, seja antes ou durante uma gravidez.
O grupo de sangue nada diz sobre a nossa compatibilidade enquanto parceiros num projecto parental. Mas esta dúvida assenta na noção de que algo no nosso sangue torna mais ou menos arriscado ter um filho com determinado parceiro. E o que é isso, então?
A nossa informação está escrita em duplicado — temos uma cópia materna e outra paterna de cada gene. Para alguns, basta um erro para existir doença — doenças dominantes. Para outros — doenças recessivas — ambas as cópias têm de ter erro.
Assim, uma pessoa com um erro é apenas portadora e não manifesta doença. E apenas filhos de casais em que ambas as pessoas são portadoras de uma alteração num mesmo gene têm risco de doença. Mas, sem uma história de doença clara e, sobretudo, sem estudos genéticos, não temos como saber.
Testes de portador: o mais próximo da “compatibilidade”
Hoje já existem testes para despiste destes estados de portador, de outra forma silenciosos. Isoladamente, estes riscos são baixos. Mas, se juntarmos todas as doenças recessivas, estes riscos já não são negligenciáveis. E existem recomendações para informar futuros pais da existência destes testes.
Habitualmente são feitos em amostras de sangue (e assim se cristaliza esta ideia de que a genética está no sangue), mas na verdade qualquer tecido poderia ser estudado, já que a informação genética está presente em todas as células.
Estes testes são o mais próximo que temos de testes de “compatibilidade”. Não eliminam o risco destas doenças, mas diminuem-no. Não permitem corrigir o erro, apenas conhecê-lo e adoptar estratégias para reduzir o risco.
As opções são: o diagnóstico molecular pré-natal — teste invasivo durante a gravidez — ou o diagnóstico pré-implantação — seleção de embriões a implantar no útero, recorrendo a técnicas de reprodução medicamente assistida.
E a consanguinidade?
“– E Dra., os meus avós eram primos. Há riscos para os meus filhos?”
A consanguinidade aumenta o risco destas doenças recessivas, porque há uma maior probabilidade de dois parceiros terem alterações genéticas idênticas (por serem da mesma família e partilharem informação genética).
Mas lembra-se do que eu disse acima: apenas filhos de casais em que ambas as pessoas são portadoras de uma alteração num mesmo gene têm risco de doença. Ou seja, o risco aumentado destas doenças pela consanguinidade acontece apenas para filhos de casais com consanguinidade. Não é extensível a outras gerações. Por isso, não — não há risco para filhos de filhos de primos, se é que me faço entender.
Doenças dominantes: basta um erro
E as doenças dominantes? Aquelas em que basta um erro num gene? Essa é outra história, com diferentes problemas.
Se basta um erro, pode haver história familiar. Se sim, podemos usar as mesmas ferramentas de diagnóstico pré-natal molecular orientado ou pré-implantação já referidas.
No entanto, como basta um erro, esse erro pode acontecer de novo, não ser herdado de ninguém. E aqui a porca torce o rabo: se tiverem manifestações detetáveis por ecografia, é possível o diagnóstico. Se não (como, por exemplo, perturbação intelectual), não!
E depois ainda existem as doenças dominantes que só se manifestam na idade adulta, como o cancro familiar ou doenças neurodegenerativas, como a “doença dos pezinhos” (doença prevalente em Portugal, que nada tem a ver com o teste do pezinho e cujo nome correto é Paramiloidose Familiar), pelo que podem ser desconhecidas no momento de uma gravidez ou planeamento da mesma.
Aneuploidias: alterações nos cromossomas
“– Tenho história de doença genética na minha família e estou preocupada: tenho um primo com Síndrome de Down.”
As alterações dos números de cromossomas (aneuploidias) são uma causa importante de malformações fetais. O risco destas associa-se à idade materna — aumenta exponencialmente após os 35 anos de idade e, por isso (na grande maioria dos casos), não há risco familiar. Resultam de erros esporádicos na formação de uma célula reprodutora, não de fatores com risco hereditário.
Os erros nos números dos cromossomas são todos possíveis, mas na sua maioria são inviáveis e não permitem uma gravidez com sucesso. Aquelas que nos preocupam são as trissomias 13, 18 e 21. Esta última, a Síndrome de Down, é a mais prevalente.
O que podemos fazer para detetar a Síndrome de Down?
A Síndrome de Down está invariavelmente associada a atraso global do desenvolvimento e perturbação do desenvolvimento intelectual, e com expressão variável a malformações de diferentes órgãos, como o coração ou intestino.
As malformações têm tradução ecográfica (e permitem diagnóstico); o atraso do desenvolvimento, não! Uma ecografia sem alterações é, então, insuficiente para excluir diagnóstico.
O fator idade também não é suficiente — representa apenas um risco.
Assim, o rastreio destas doenças tem vindo a ser optimizado: de realizar amniocentese sempre em mulheres com mais de 35 anos, para uma estratificação de risco através de um rastreio combinado, que engloba fatores clínicos, laboratoriais e ecográficos, e finalmente para a possibilidade de estudo do ADN fetal livre em circulação materna através de uma análise ao sangue desta. Este teste, que vulgarmente conhecemos como NIPT (sigla em inglês para teste pré-natal não invasivo), mudou as regras do jogo!
O NIPT: um avanço revolucionário
Feito por amostra de sangue materno, sem janelas temporais (em qualquer altura após as 9 semanas), é o rastreio com maior sensibilidade e especificidade para as principais aneuploidias.
A gravidez provoca um aumento em circulação de pequenos fragmentos de ADN, com origem placentar, que refletem o ADN do feto (tirando pequenas exceções em que a alteração está só na placenta). E por isso, atenção! Eu usei a palavra rastreio. Sim, embora tenha uma sensibilidade e especificidade acima dos 99% para as trissomias 13, 18 e 21, carece de confirmação diagnóstica (por exame invasivo) se indicar um risco alto de doença.
“Durante a gravidez fiz uma amniocentese e era normal. E agora o meu filho tem problemas. Como se explica isto?”
Um pequeno parêntesis para um esclarecimento sobre o diagnóstico pré-natal invasivo. As técnicas invasivas são a biópsia das vilosidades coriónicas e a mais conhecida amniocentese. Os testes feitos dependem da nossa suspeita.
Se a suspeita é Síndrome de Down, a indicação é realizar um cariótipo — um exame que permite a visualização microscópica dos cromossomas (apenas isso). Noutros casos, como história familiar de doenças monogénicas recessivas ou dominantes, estudamos apenas uma variante num gene, previamente identificada num familiar.
Se o motivo para o exame são alterações ecográficas, pode haver indicação para fazer um estudo mais exploratório, de sequenciação mais abrangente, incluindo vários genes associados à suspeita clínica. No entanto, existem genes por descobrir, mecanismos de doença não esclarecidos e limitações das técnicas de sequenciação, que não permitem identificar tudo!
O que quero dizer com isto? Que é importante ressalvar que um teste que não encontrou alterações, não exclui doença genética. Um teste negativo exclui, e nalguns casos diminui, aquilo que foi pesquisado — e somente isso. A nossa resposta vai depender da nossa pergunta. E ainda há perguntas sem resposta.
O futuro da genética pré-natal
Vou voltar ao NIPT e a esta nossa capacidade, em autêntica revolução, de estudar o DNA do feto no sangue da mãe. Traz-me esperança — e espero que a sinta também.
A sua aplicação está a ser escalada para despiste de duplicações, deleções e doenças monogénicas (aquelas que só têm uma “palavra” mal escrita). Sim, aquelas para as quais não temos resposta com a mesma eficácia (os ensaios já realizados são bastante promissores).
Discute-se muito atualmente o teste do pezinho genético, em que se testam muitas doenças genéticas ao nascimento. Os principais entraves são éticos e prendem-se com a incerteza de alguns resultados.
Eu acredito que essa revolução será de chama curta e será rapidamente substituída por um pan-teste genético pré-natal, uma vez que haja respostas para o que testar, como interpretar, o que reportar. Porquê esperar pelo nascimento, se pudermos, através de uma simples análise de sangue, tomar decisões ainda durante a gravidez?
Um salto para o desconhecido
Recordando, podemos ter doença que resulta de uma alteração do número das enciclopédias (cromossomas), por páginas rasgadas (deleções) ou apenas uma palavra (gene) escrita de forma errada.
Para as doenças recessivas, pesa a herança genética (e podemos fazer testes antes da gravidez); nas alterações do número dos cromossomas, o acaso (e os testes podem ser feitos apenas durante a gravidez); e para as doenças dominantes, há um pouco das duas.
A evolução da nossa capacidade de testar não tem parado de crescer, e acredito que num futuro breve poderemos testar mais durante a gravidez e de forma não invasiva, sem nunca esquecer os limites dos testes e as implicações dos resultados.
Se a gravidez continua a ser um salto para o desconhecido? Continua! Mas cada vez mais vamos traçando linhas e caminhos, que nos permitam decisões ajustadas aos nossos desejos, medos, vontades e crenças.