No momento da escolha da minha de especialização clínica na faculdade, optei pela abordagem terapêutica cognitivo-comportamental (TCC). Baseada no trabalho desenvolvido por Aaron T. Beck, este psiquiatra incorporou o pensamento filosófico de responsabilidade individual perante as circunstâncias, aliada à análise dos comportamentos disfuncionais. O objetivo é identificar os padrões que nos mantêm nas situações promotoras de desequilíbrio psicológico e reestruturá-los por forma a treinar novos comportamentos e hábitos de pensamento funcionais. O existencialismo, na sua origem filosófica, está muito presente nas sessões de psicoterapia, onde se investiga demoradamente a validade das nossas crenças e como estas influenciam as nossas escolhas do quotidiano. Ao longo dos anos fui complementando a minha formação com abordagens terapêuticas atualizadas, mas rendo uma sentida homenagem a Aaron T. Beck por ter criado várias estratégias que nos ensinam a pensar: as causas e consequências da nossa ação no presente, modeladas pelo passado, nas nossas escolhas futuras.
No consultório é notório que as pessoas, com frequência, ficam perdidas no conceito de estarmos “condenados a ser livres”. Quando há várias escolhas queremos fazer a melhor possível de modo a garantir a nossa sobrevivência e bem-estar – que, curiosamente, não são equivalentes. Na sobrevivência inclui-se o alimento, o abrigo, o afeto e a sensação de pertença ao grupo, só para citar as necessidades mais prementes. No entanto, podemos satisfazê-las e ainda assim não sentir bem-estar no nosso dia-a-dia, na vida que construímos.
O que é que a sociedade dita como adequado?
Comecei a observar que muitas pessoas tinham feito aquilo que a sociedade ditava como adequado, mas não tinham pensado se era assim que se iriam sentir satisfeitas. E, no mundo ocidental, o que é que a sociedade dita como adequado? Chamo-lhe o “Guião C” que não estando explícito em lado algum, parece implícito em todo o lado.
Apresento-lhe o “Guião C”.
No “Guião C” tudo começa por “C”, como se de um Carril se tratasse, com limitações na mudança de rumo a partir do momento em que entramos nesse Comboio invisível. Assim, é esperado que entremos na faculdade onde vamos tirar um Curso, para construirmos uma Carreira, ao mesmo tempo que tiramos a Carta de Condução para adquirirmos um Carro. Não muito depois espera-se que Casemos, tenhamos Crianças, façamos um Crédito para comprarmos uma Casa, onde acontece a Cópula entre os dois Cônjuges e, às vezes, adotamos um Cão.
Não há nada de mal neste “Guião C” se este for o Guião que queremos adotar na nossa vida. Tem trazido satisfação a milhões de pessoas pelo mundo fora. Mas este Guião tem de ser uma escolha refletida para proporcionar bem-estar. Felizmente já há quem o faça, como o comprova o mais recente vídeo da criadora de conteúdos, Bumba na Fofinha.
São incontáveis as vezes que as pessoas despertam algures na sua vida e sentem que não escolheram nada do que estão a viver…
Sentem-se vazias e sufocadas para cumprir o “Guião C”.
Uma das áreas que mais desconforto traz neste Guião é por quem nos apaixonamos. Talvez ficasse surpreendida/o se soubesse quantas pessoas vejo chorar de profunda dor porque se apaixonaram pela “pessoa errada”. “Ana, os meus pais nunca vão aceitar o facto de ele não ter um curso superior, ele é eletricista e trabalha nas obras”; “Sou um monstro, apaixonei-me por uma mulher, os meus amigos vão afastar-se se souberem que agora virei lésbica”; “Tanta gente para me apaixonar e tinha logo de me apaixonar por um homem com mais 25 anos que eu… podia ser meu pai!”; “Sei que os tempos são outros, mas uma mulher negra na minha família não vai cair bem”; “Ela tem uma filha de uma relação anterior, os meus pais vão-se passar”. São tantos, mas tantos os exemplos. Quando percebo que existe respeito, carinho, apoio, desejo e ternura nessas relações, o coração aperta-se porque sei que é preciso uma dose extra de força para viver essa relação num contexto hostil: a força para viver os altos e baixos de qualquer relação e a força de enfrentar a reprovação, a crítica, o desprezo e, muitas vezes, até o abandono porque escolhemos o que é diferente.
Vive-se um dilema doloroso porque qualquer opção implica perder algo de importante.
Que dor queremos enfrentar: a marginalização do grupo ou a alienação das nossas necessidades?
Lamento, mas não há respostas certas e simples a estes dilemas.
Acompanho a pessoa na sua dor e na sua escolha …e por vezes dói ver o momento em que ela opta por se suicidar psicologicamente: “Lamento que tenha de sofrer tanto e que tenha de passar por isto”, oiço-me dizer. Por vezes, a pessoa que entra a seguir no consultório tem como tema a dor de não ter tido a força de, no passado, fazer a escolha difícil. “Sabe, agora é que percebo que ando a viver meia vida há muitos anos, mas era a altura de casar, queria muito ter filhos e a carreira estava num momento muito exigente. O que me dói é que nada disto me traz a satisfação que deveria trazer.” E estes últimos também choram de dor.
Será mais importante cumprir ou existir?
Antes de entrarmos nesse comboio do “Guião C”, de alta velocidade, será que não podemos escolher o inter-regional primeiro, para fazermos umas paragens em estações e apeadeiros ao longo do Caminho? Será mais importante cumprir ou existir?