A dor como doença

José Santos // Dezembro 16, 2016
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A dor é um fenómeno comum na nossa vida. Habitualmente a dor resulta de uma lesão e tem uma função de defesa e alerta para o organismo. Sendo geralmente definida como uma sensação no mínimo desagradável, facilmente percebemos que tem a finalidade de proteger o nosso corpo. Esta dor, pode ter vários níveis e quando se torna difícil de suportar, é designada em termos médicos, de aguda, tendo uma origem fisiológica que aparece na sequência de um traumatismo bem determinado e que provoca uma reação complexa. No geral esta dor desaparece algum tempo depois de terminar a agressão e consequentemente reparar ou cicatrizar a lesão. Mas nem sempre a história é assim tão simples. Existe outro tipo de dor: a que chamamos de dor crónica. Esta dor é de tal maneira diferente, que ao contrário da dor aguda que é considerada um sintoma, a crónica é considerada ela própria uma doença.

Sem entrar em mecanismos neurológicos complexos e em parte alguns deles ainda desconhecidos da ciência, este fenómeno da dor crónica perde o carater protetor da dor. Esta dor persiste muito tempo depois do traumatismo que a iniciou e intromete-se na vida da pessoa que sofre. Esta dor torna a pessoa “prisioneira” do seu próprio sistema nervoso – em parte perdeu o controlo sobre um mecanismo que a devia proteger e que passa a agredi-la em várias facetas da sua vida. A dor crónica interfere com a qualidade do sono, com o humor da pessoa, com a alimentação e até com a memória e capacidade de aprendizagem. Sendo que o pior é que afeta a capacidade de interação do individuo com a sociedade e família – no geral uma pessoa com dor crónica tem uma conjunto de características que afetam todos os seus mecanismos automáticos de regulação do corpo. Poderá sentir todas ou apenas algumas destas queixas: tem febre sem que o termómetro o indique, terá problemas digestivos ou intestinais, problemas de controlo da bexiga, tonturas, cansaço e fadiga e flutuação de humor com tendência a estar mais irritado e impaciente ou mesmo a parecer deprimido. Tudo isto sem que os exames de imagem e análises acusem alterações importantes, até porque a lesão que originou tudo isto já cicatrizou, mas deixou atrás de si este pesadelo que é a dor crónica.

E como é que eu sei se tenho dor crónica? Se a dor está consigo há 3 meses ou mais, com certeza ela de algum modo já “penetrou” no seu sistema neurológico e se apoderou de alguns dos sistemas que seriam primordiais na proteção do seu corpo. Percebe-se por exemplo que um animal ferido e portanto com dor, não se pode dar ao luxo de dormir profundamente, pois será um alvo fácil para os predadores. Logo fica em alerta para se proteger. O problema é quando este mecanismo de proteção se volta contra nós. A artrose do joelho, por exemplo, provoca dor e este sintoma impede a pessoa de dormir bem e recuperar para o dia seguinte. Progressivamente a pessoa vai ficando mais cansada e com menos vontade de sair e sociabilizar, fazendo com que a dor no joelho limite todo o movimento. O corpo “pede” comida doce ou gorduras para compensar a tristeza que se instala e progressivamente a pessoa aumenta de peso, o que aumenta ainda mais a dor e todas as suas consequências nefastas. O stress crónico, que falámos anteriormente, mesmo sem dor, pode desencadear o mesmo tipo de reações negativas e incapacitantes.

Como se trata esta situação? Assim como se acumulam diversos fatores para que uma dor protetora se torne uma dor de doença, também são precisos vários elementos para controlar a dor crónica e os seus efeitos negativos. Primeiro que tudo a própria pessoa tem de ser o principal elo de uma cadeia ou equipa que se quer muito unida. A pessoa precisa de perceber e entender como chegou à situação, que problemas se acumularam e a prejudicam, de modo a poder focar a atenção em ultrapassar, com paciência e muita determinação, cada um destes desafios. O médico que a acompanha deve fazer uma avaliação clínica detalhada da situação e ambos devem determinar a melhor estratégia para melhorar a qualidade do sono, para definir um plano alimentar adequado, planear um plano de reabilitação física ajustado, habitualmente com fisioterapia e outras terapias complementares. Mas acima de tudo com um plano de reabilitação social que devolva à pessoa atividades que a façam sentir bem e útil e muito importante, de modo que mesmo que a dor persista, ela já não seja o centro da sua vida. Os medicamentos são importantes, as terapias são fundamentais, mas o mais importante é que a pessoa tome conta da sua própria vida outra vez.

Sou médico desde 2003 e pelo menos desde essa altura que a dor é simultaneamente uma ajuda e um inimigo diário. Prescrevo diariamente muitos analgésicos e anti inflamatórios e há uns anos adicionei a acupunctura às minhas “armas” terapêuticas. Estudo diariamente para ser cada vez mais eficaz no uso das mesmas, mas cada vez estou mais consciente de que sem a ajuda de cada um dos meus doentes em seu próprio favor, eu, os meus colegas e outros profissionais de saúde pouco conseguimos fazer. Preocupo-me muito em saber qual é o medicamente mais adequado ou o melhor músculo ou nervo para colocar as minhas agulhas, mas acima de tudo sinto que preciso de conseguir chegar ao coração de cada um dos meus doentes, para acender a luz da esperança de modo a que trabalhem para melhorar e se livrarem do “monstro da dor crónica”.

Jose Santos

josefsantos@docnurse.pt

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