Será a "paciência divina" uma qualidade?

Eduardo Sá // Setembro 2, 2018
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A paciência é uma qualidade. Mas, a paciência de mais arrisca-se a ser um defeito. É por isso que não entendo os desabafos de muitas mães quando reconhecem ter um filho que tira a paciência até a um santo. Imagino eu que isso queira dizer que um santo será mais paciente. Ora, se for assim, e assumindo que a paciência levada ao exagero é um defeito, arrisco-me a concluir que, por mais que tenha havido um sem-número de qualidades pelas quais eles tenham merecido a imensa graça da sua santidade, não terá sido pela paciência exagerada que os santos terão ganho o céu. E, por mais que, levada ao absurdo, essa paciência sem limite possa ser uma qualidade quase divina, há crianças que – por mais que os pais lhes chamem “meu anjinho” e coisas assim – ao tirarem a paciência a quem a tenha quase até à eternidade, abalem as convicções de todos os santos e lhes façam aquilo que nem o diabo consegue fazer. Talvez seja por isso que, ao mesmo tempo que lhes chamam “meu anjinho”, os pais – na sua sua sábia clarividência – chamem aos filhos, igualmente, meu… “diabinho”.

Se até um santo, diante da teimosia duma criança, vê a sua paciência entrar num esgotamento e eclipsar-se, o que não há-de suceder aos pais, com a humildade de todos os mortais?

Mais grave, ainda, é que esta ideia de existirem crianças que esgotam a paciência a um santo acaba por fazer delas uma “força da natureza” à qual nem os mais doutos argumentos divinos conseguirão escapar, é que essa rendição de quem é santo à teimosia das crianças pressupõe que, diante dela, a singela fragilidade humana de todos os pais pouco pode fazer. Por outras palavras, em relação à paciência dos pais, assim que uma criança faça alguma força para a desafiar, as probabilidades dela capitular pela certa serão imensas. O que, feitas as contas, tem um atenuante: se até um santo, diante da teimosia duma criança, vê a sua paciência entrar num esgotamento e eclipsar-se, o que não há-de suceder aos pais, com a humildade de todos os mortais? Como podem transcender-se em vez de se renderem ao “mau feitio” dos seus pimpolhos e perderem, quase sempre, quando se trata de concorrer com eles? Se for assim – Ele que me desculpe – que mau passo é que Deus pode ter dado durante a Criação quando inventou as crianças? A mim parece-me que, ao querê-las como elas são – capazes de esgotar a paciência até aos santos – Ele considerou o jeitinho especial das crianças para a teimosia como uma provação diante da qual todos os pais nunca terão a veleidade da omnipotência. E, por via disso, e por mais divinos que eles sejam, terá garantido que, desta maneira, e em momento algum, lhes passará pela cabeça a tentação de se armarem em Deus.

Seja como for, a teimosia das crianças é – sim, senhor! – uma prova evidente que, diante do mistério da vida, nem tudo é perfeito. E, ao mesmo tempo, é bem a prova que as crianças teimosas têm “personalidade”.

Por outras palavras, sabem o que querem. E – mais, ainda – arriscam-se a fazer escolhas e a lutar por elas. Acresce que a teimosia das crianças não será, realmente, um equívoco da Criação. Talvez seja, até, a prova da sua sabedoria. Porque a teimosia das crianças é directamente proporcional à insegurança dos pais. Ou seja, quanto mais eles são inseguros mais a teimosia das crianças os põe à prova, todos os dias; quanto mais eles fazem por não colocar limites à sua paciência mais elas os levam à exaustão na esperança de os verem a transcenderem-se e a mostrar que até o coração mais competente para as qualidades divinas se zanga, se enfurece, repreende e castiga. Por outras palavras, não é a paciência dos santos que devia ser o motivo de inspiração para todos os pais. Mas, a capacidade que as crianças têm de pôr à prova a paciência dos seus pais. Que os leva a aprender a ligar a bondade com o não, com as regras e com a justiça, argumentos sem os quais, por melhor que sejam os pais, nunca se chega ao céu.

As crianças só esgotam a paciência aos pais quando eles estão a ter imensas dificuldades de definir uma regra e a fazê-la cumprir. Por outras palavras, os pais só esgotam a paciência quando fazem de santos em vez de serem só pais.

Ora, é aqui que me parece que os pais fraquejam vezes demais. É claro que amam desmedidamente os seus filhos. E, que são adocicados e almofadados. É claro que se perdem em avisos e que falam exageradamente ao coração. E, que se exaltam, se esganiçam, ameaçam um ror de vezes e, quando lhes faltam as forças, é claro que são óptimos a fazer de conta que não vêm as asneiras dos filhos. Sempre com a secreta convicção que conseguirão ser pais sem que eles os obriguem a zangar-se. Mas, as crianças só esgotam a paciência aos pais (e os levam ora a reconhecer que estão cansados de se ouvir ora a descobrir, com perplexidade, que elas não ouvem) quando eles estão a ter imensas dificuldades de definir uma regra e a fazê-la cumprir. Por outras palavras, os pais só esgotam a paciência quando fazem de santos em vez de serem só pais.

Sendo assim, era importante que os pais fizessem da paciência uma qualidade preciosa que deve ter conta, peso e medida.

E, que entendam que ser-se paciente é saber-se escutar, sentir e intuir. É saber-se vacilar. É aprender-se com os erros e com os enganos. É ponderar e exagerar. Mas, não é – não pode ser! – levar a paciência ao exagero. Porque por mais que essa intenção se mova pela bondade, os pais que fazem de santos não só não são bondosos, como não são divinos, naquilo que dão. Nem chegam – como podiam chegar – como pais, ao céu. O que, valha a verdade, nunca se consegue sem se passar pela provação de lhes faltar, regularmente, alguma coisa. Sempre que se trata de lidar com a teimosia das crianças.

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