Sou alentejana, vim estudar para Lisboa aos 17 anos, e não tenho um historial trazido da infância ou adolescência que esteja ligado ao conceito formal de voluntariado, a não ser ter assistido, ao longo de toda a minha vida, aos atos de solidariedade dos meus pais junto de pessoas, maioritariamente vizinhos, que passavam dificuldades. A minha mãe nunca conseguiu dizer que não a alguém que lhe pedia ajuda, nem fechou a porta de casa sem ter ido “desencantar” alguma coisa que pudesse dar para aliviar as suas carências. Quanto ao meu pai, esteve ligado aos Bombeiros Voluntários, desde cedo e até ao fim dos seus dias, tendo connosco partilhado infinitas histórias de sofrimento e perda.
Desde 2004 que tenho feito viagens de férias a alguns países africanos de língua portuguesa e desde o início achei perfeitamente natural levar na mala mais do que os biquínis e a roupa colorida para usar à noite. Na primeira vez em Cabo Verde arrastei o nosso grupo de amigos para os bairros de lata, e na minha estreia em S.Tomé e Príncipe tive a sorte de me cruzar no caminho de umas pessoas pertencentes a uma ONG portuguesa na área da cooperação, tendo com elas visitado algumas escolas e feito distribuição de bens.
Em 2010, tornei-me voluntária.
Apenas em 2010, quase à beira de fazer 40 anos, tornei-me voluntária na Comunidade Vida e Paz. Tal não se deveu a um qualquer despertar repentino ou rebate de consciência causado pelo avançar da idade, mas antes a algo que se foi instalando interiormente, naturalmente, a pouco e pouco, e que culminou na tomada de decisão em dar o passo. Ou, simplesmente lembrei que era preciso ir mais longe, mas aqui ao lado.
E, porquê a Comunidade Vida e Paz?
Sempre que via alguma reportagem na televisão retratando os voluntários que saíam à noite para ir ter com pessoas em situação de sem abrigo, sentia uma vontade imensa de estar lá. Sempre que via uma notícia sobre aquela Festa de Natal gigante que dura 3 dias, sentia necessidade de fazer parte da equipa e contribuir.
Iniciei um caminho de enorme aprendizagem e crescimento.
A partir do momento da minha entrada, iniciei um caminho de enorme aprendizagem e crescimento que até hoje não cessou de me moldar.
Comecei por integrar as Equipas de Rua que fazem as voltas à noite. A Comunidade tem por missão ir ao encontro de pessoas em situação de sem abrigo ou em vulnerabilidade social, com o propósito de criar uma relação de confiança que faça despertar nelas o desejo de mudar de vida. Para tal dispõe de um exército de cerca 500 voluntários divididos em 56 equipas, os quais saem rotativamente, de 15 em 15 dias, pela cidade de Lisboa, percorrendo 4 circuitos fixos (as chamadas “Voltas”), permitindo à Comunidade estar na rua desde 01 de Janeiro até 31 de Dezembro, sem faltas, nem férias ou feriados que interrompam esta presença diária.
Como actua um voluntário da Comunidade Vida e Paz?
Para além de darmos o nosso tempo, e tantas vezes que não o medimos a não ser pela estrita necessidade do outro em estar connosco, em desabafar ou mesmo despejar em nós as suas frustrações profundas, damos a nossa compreensão e o nosso carinho, sem discriminação, sem julgamento, sem qualquer condenação. Tentamos abrir caminho nas suas vontades e corações para que outros passos sejam dados, com vista à reconstrução de um novo sentido de vida. Para isso encaminhamos as pessoas que assistimos, cerca de 450 em cada noite, no total das 4 Voltas, para os técnicos que compõem uma equipa multidisciplinar, na área social, e, esses sim, estão habilitados a fazer a entrevista necessária para identificação da problemática de cada pessoa e, em conjunto, definirem um projeto com futuro.
Este caminho, em regime de internamento, passará por uma fase terapêutica, nos casos em que existem problemas de adições, na qual se trabalha a recuperação física, psicológica e espiritual, à qual se segue a fase de inserção, com vista à aquisição e treino de competências pessoais, sociais e profissionais indispensáveis à sua reintegração na sociedade.
Qual a missão da Comunidade Vida e Paz?
Como eu gosto de dizer, a Comunidade tem uma missão que vai de A a Z, ou seja, está presente em todo o circuito: desde a ida para a rua ao encontro das pessoas, passando pela sua recuperação e até à sua reintegração. É algo único!
A minha experiência como voluntária na Comunidade Vida e Paz:
Com tanta coisa a acontecer, urgia conhecer no terreno toda a dimensão da atividade da Instituição. Não me podia confinar à minha volta, e ao meu circuito, e às minhas saídas quinzenais. Assim, desde cedo comecei a infiltrar-me nas carrinhas de outros voluntários que ia conhecendo, fazendo-me de convidada, e fui experimentar cada um dos 4 circuitos das Voltas, as vezes que conseguia e me apetecia, bem como a Volta das Famílias. Sim, porque a Comunidade também tem o seu foco nas famílias carenciadas, apoiando-as ao nível das suas necessidades básicas, mas com vista à reestruturação do agregado.
Claro que, a seguir, se tornou imperativo para mim visitar o Espaço Aberto ao Diálogo, o tal local onde se encontram os técnicos que trabalham lado a lado e em conjunto com as pessoas sem abrigo. Não podia cingir-me a falar insistentemente na rua em algo que eu própria não conhecia e, assim, lá fui, e foi lá que conheci os rostos de quem ajuda a abrir asas quebradas.
O mesmo se passava com os Centros Terapêuticos e de Inserção – como poderia falar sobre o seu potencial regenerador ou propor a alguém uma saída que implica um esforço e um tempo muitíssimo consideráveis, sem que soubesse como tudo isso ia acontecer? E, assim visitei cada uma das 3 infraestruturas que a Comunidade dispõe em vários pontos do País, com um total de mais de 220 camas de internamento. E, após a primeira ida sentimos necessidade de voltar, e voltar, não só para rever pessoas que conhecemos e acompanhámos na rua (muitas das vezes irreconhecíveis, pois já sem as marcas cruéis de uma vida sem teto nem abrigo), mas também para as ouvirmos nos seus testemunhos pungentes. Aí, abrem-se-nos ainda mais, e, através das suas experiências, tão variadas e tantas vezes em resultado de um acontecimento perfeitamente aleatório, percebemos claramente que a fronteira que nos separa desse outro lado não é assim tão distante ou impossível… Foi, e tem sido, uma experiência tremenda estar nos locais onde decorre essa transformação de vidas humanas e sentir a força e coragem desses homens!
Chegado o Natal no meu primeiro ano de voluntariado, lá marquei presença na Festa que aquece os corações de cerca de 1400 pessoas na época mais doce do ano, mas que pode igualmente ser tão dura para quem se encontra órfão de afetos. Até hoje não faltei a uma única, por mais obstáculos que surjam.
Claro está que, quando surgiu um novo tipo de intervenção na rua, eu tive de o abraçar. Com a Equipa Técnica de Rua, reunindo voluntários e um técnico do Espaço Aberto ao Diálogo, a Comunidade desenvolve o contato e aprofunda as relações. Sem as habituais ceias e agasalhos que se levam para oferecer e que nos facilitam o caminho, somos só nós e a nossa palavra que servem para desenvolver o desejo de mudança. Sentimo-nos mais envolvidos e vivemos e partilhamos em grupo todos os passos relevantes: rejubilamos com os sucessos e, nos demais casos, alimentamos a esperança no futuro!
Ser voluntário implica um compromisso sério.
Pertencer às equipas de rua, “fazer Voltas” como dizemos, implica um nível de compromisso sério, tal como deve ser, no fundo, em todo o tipo de voluntariado. Neste caso em particular, implica sair de casa no Verão ou no Inverno, com 40 graus ou chuva fria intensa, após um dia bom ou mau, seja ele comum ou calhe numa data especial. Sempre achei, como tantos outros voluntários que conheço, que a minha disponibilidade não deve depender da agenda, humores ou festas, mas, sim, do meu compromisso pessoal, que assumi de livre vontade e me guia, respeitando as pessoas que nos esperam e a equipa da qual fazemos parte.
Ser voluntária na noite de consoada.
Foi por tal razão que, quando a minha Volta calhou na noite de Carnaval, eu não faltei; quando coincidiu com a noite dos Santos Populares, não fui festejar; quando veio o 31 de Dezembro, não marquei planos para a passagem de ano e quando chegou ao dia 24 de Dezembro, fiz Volta na mesma. Foi o mais difícil, devo confessar, pois embora eu sempre tenha avisado a minha família que não iria faltar quando esse momento surgisse, eis que chega a hora de o concretizar e torna-se complicado de aceitar pelos demais. Não fiz a ceia de Natal no Alentejo, como sempre, voltei mais cedo para Lisboa e à hora habitual estava na sede da Comunidade para fazer volta, tal como outros colegas meus.
Na verdade, para além da questão do compromisso, que levo muito a sério, há ainda um outro factor relevante que me impedia de faltar – passo todos os anos a noite da consoada com a minha família, tendo a bênção de ainda estar completa naquela altura e não ter sentido qualquer perda direta, pelo que aquela seria, muito provavelmente, a única vez em que eu teria um argumento válido, e tão justificado, para me ausentar num momento que se reveste de tamanha importância para qualquer família. Ademais, seria para estar junto de quem nada possui e tanto precisa de afeto. Para reencontrar caras conhecidas e amigas no mesmo dia de sempre, à hora de sempre, ou então para confortar novos rostos perdidos na noite vazia da cidade. Assim sendo, nunca foi algo que requeresse muita reflexão nem dúvida da minha parte.
Ser voluntária já não é uma simples opção.
Por vezes acusam os voluntários de fazer voluntariado para sua satisfação e proveito próprios. E, porque não? A alegria de conseguir mudar, ou pelo menos tocar, a vida de alguém, mesmo que seja em número reduzidíssimo, faz com que eu volte todas as semanas, todas as Festas. Faz com que partilhe o meu número de telefone e abra a minha vida pessoal ainda mais, para ser amiga e confidente e estar mais disponível do que nas Voltas. Faz com que o ser voluntária já não seja uma simples opção. Vejo-me como um pequeno elo de uma corrente enorme, a qual precisa de estar unida para ser útil, forte e produzir o efeito a que se destina.
Vejo o voluntariado como uma parte de mim, indissociável da minha existência e sinto-me incompleta se não mantenho a minha prática regular. Para mim, que colaboro ainda com outras organizações, é mesmo um modo de viver, seja Natal ou Carnaval.