Dias antes do anúncio da primeira morte em Portugal devido à COVID-19 e, por conseguinte, do primeiro confinamento obrigatório, fui uma das pessoas que se recolheu em casa. Estava a colaborar como voluntária num projecto de organização do arquivo da Comunidade Vida e Paz e a entidade decidiu avançar para o teletrabalho.
Estive sem sair de casa durante cerca de 4 semanas após o decreto do estado de emergência, com excepção da ida ao supermercado e, claro, da ida à volta quinzenal que fazia há 10 anos.
As “voltas da noite” consistem em rotas efectuadas por equipas de voluntários da Comunidade Vida e Paz que percorrem, numa carrinha, as ruas da cidade de Lisboa com o objectivo de estabelecerem uma relação de confiança com as pessoas em situação de sem abrigo, oferecendo uma pequena ceia e alguma roupa, mas o propósito maior é o de as motivar para a mudança de vida e fazer o seu encaminhamento para os técnicos que as poderão acompanhar.
Com o confinamento praticamente tudo parou, como sabemos, e a intervenção na rua não foi excepção.
Quase todas as organizações de apoio à população sem abrigo deixaram de prestar a sua assistência alimentar ou de outra natureza, tendo a Comunidade sido a única a permanecer. De início, em conjunto com duas outras organizações, as quais cederam alternadamente as suas refeições, sendo que a Comunidade distribuía-as pelas ruas às pessoas através de muitas dezenas de voluntários. Após algum tempo, esta situação deixou de ser sustentável e a Comunidade teve de procurar alternativas. E fez um apelo à sociedade civil. Este foi o início de um período absolutamente ímpar e marcante – o que teve de sofrimento trouxe em beleza.
Por um lado, ao longo de vários meses, com tudo fechado e a vida paralisada, fomos confrontados com incontáveis rostos de desespero, fome e desalento.
Tantas e tantas pessoas que perderam os seus empregos, as suas casas ou quartos e se viram na situação inesperada de ir para a rua pedir ajuda.
E enquanto na rua víamos as filas de pessoas a pedirem comida a crescerem desmedidamente, e a suplicarem-nos para não as abandonarmos, por outro lado muitas entidades, empresas e cidadãos foram oferecendo os seus donativos tão generosamente à Comunidade.
Apenas graças a este enorme e massivo esforço colectivo foi possível continuar a ir todas as noites ao encontro de quem por nós esperava, levando não somente alimentos, mas tanto conforto. E foram tantos os voluntários que persistiram e outros que se fizeram presentes!
Paralelamente, e à medida que fui vendo a situação a agravar-se ao longo daquelas 4 semanas de confinamento, enquanto voluntária senti-me profundamente impelida a fazer algo mais num período tão grave e de tão grandes carências e incertezas. Assim, voltei a contactar a Associação Serve The City, à qual estive ligada entre 2012 e 2016, e ofereci-me para ajudar no que fosse necessário. Também ela dedicada aos mais vulneráveis e excluídos, viu vários dos seus projectos suspensos devido aos riscos de contactos, mas teve a magnífica capacidade de se reinventar num curto espaço de tempo, adaptou-se a novas e tão desafiantes circunstâncias e continuou a servir a Cidade.
Com a Serve The City comecei a ir aos vários centros de acolhimento de emergência que a Câmara Municipal de Lisboa tão meritoriamente abriu para retirar as pessoas sem abrigo da rua e integrei uma equipa de dinamização de actividades nesses mesmos locais, criando oportunidades de estímulo afectivo e cognitivo, de sentido de pertença e inclusão.
Quer com as pessoas com quem me fui cruzando nas ruas ao fazer as “voltas”, quer nos centros de acolhimento de emergência que ainda hoje se encontram abertos, fomos aprendendo a expressarmo-nos e a abraçarmo-nos sem nos tocarmos.
Criámos uma nova linguagem gestual e corporal e uma outra forma de comunicação se gerou do fundo das nossas vontades em estarmos juntos.
Até hoje, e desde meados de Abril de 2020, não mais parei. Até aumentei e significativamente a minha contribuição voluntária. Não podia ser de outra forma. Acabei por ver fechar o meu negócio, também passei pelos meus desafios na sequência da onda de choque que a pandemia provocou, mas tive uma rede de apoio que muitos não têm, por força das mais variadas circunstâncias.
Não nos compete a nós julgar e muito menos condenar. Apenas ajudar e ser solidário.
Para mim, ser voluntário é mostrar-se disponível na hora da chamada, estar presente nos momentos mais difíceis e dar-se sem questionar ou racionalizar. Mais do que um dever cívico, é um imperativo humano.