Segunda oportunidade

Joel Neto // Janeiro 29, 2021
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No dia em que voltei a aterrar nos Açores, desta vez com a intenção de ficar, não saberia dizer o preço de um quilo de arroz. Vinte anos antes, enfiara os pertences da juventude num grande saco camuflado que a minha mãe mandara comprar na base aérea americana e partira – mais do que em busca de sonhos – ansioso por sair dali para fora. Entretanto, e durante duas décadas, fizera de tudo: entrevistara chefes de estado, conhecera dezenas de países, ganhara muito dinheiro (e gastara-o sem piedade). Fora todas as personagens: o estudante insurrecto, o marido romântico, o chefe prepotente, o candidato a escritor. Cometera todos os erros: conduzira alcoolizado, dormira com mulheres que não eram a minha, envolvera-me em debates sobre cujo assunto não possuía um mínimo de conhecimento. Em suma, crescera em público, como dizia a canção – vivera. Vivera até em bom estilo, se considerássemos o contexto de onde vinha: pobre, rural, protestante, ilhéu – sucessivas ilhas dentro de outras ilhas. Proporcionara-mo Lisboa, a experiência e a aprendizagem. Nunca poderei agradecer-lhe tudo o que me deu. Mas a verdade é que voltava, ao fim de todo esse tempo, e não sabia o preço de um quilo de arroz.

Não sabia o preço de um quilo de arroz.

Nem como se assentava um tijolo a prumo. Nem em que mês floriam as camélias. Nem que se podia atear uma fogueira sem uma acendalha. Nem o que os pobres comiam ao jantar.

O que os pobres comem ao jantar. Agora que olho para trás, à distância de sete anos que eram para ter sido quatro e desde então deixei de me questionar sobre quantos serão, pode bem ter sido essa a maior de todas as instruções: o que os pobres comem ao jantar. Apesar de tudo o mais que adquiri, creio que nada me mudou tanto, emocional e intelectualmente, como a possibilidade de viver entre os pobres (na verdade, de voltar a viver entre os pobres). Porque os Açores são uma terra pobre. Ilhas deslumbrantes, com um resto singular de autenticidade e um povo tão caloroso como talvez já não existam muitos, lideram, paradoxalmente, todas as estatísticas nacionais de subdesenvolvimento humano – repito: todas as estatísticas nacionais de subdesenvolvimento humano – e estão, de muitos pontos de vista, a caminho de lado nenhum. E, quando eu tentei imaginar-me na pele de uma criança nascida sem meios num lugar assim, belo e desprovido de horizontes, fui obrigado a rever tudo aquilo em que acreditava sobre o papel do Estado, sobre a política partidária, sobre a própria ideologia – e, evidentemente, sobre as funções da arte.

Um desvio estratégico.

Partira de Lisboa com um intuito que era também o de um desvio estratégico. Tinha uma vida divertida, mas cara. Vivia nos bairros históricos, em casas dispendiosas e com hábitos dispendiosos também. Entretanto, as indústrias de que subsistia, os livros e os jornais, haviam entrado em falência. O futuro adivinhava-se sombrio, ademais quem sempre tinha prezado a ideia de independência. Estava triste, estava gordo e estava, provavelmente, deprimido – tinha deixado de fazer planos, como se me escasseasse agora o desígnio.

Contei a mim mesmo a mais bela história.

Não era coisa pouca, porque a mais nada me comprometera com a mesma convicção: haveria de fazer planos até ao fim. E, então, contei a mim mesmo a mais bela história. Lisboa era uma cidade maravilhosa – Lisboa é uma cidade maravilhosa –, mas talvez tivesse deixado de ser para mim. Já mudando-me para os Açores, onde de qualquer modo vinha passando cada vez mais tempo, poderia ter uma vida mais barata, consequentemente mais livre, seguramente mais saudável, indiscutivelmente mais bela e talvez até mais serena, contanto o demónio não se contivesse afinal dentro de mim.

Preencher os espaços em branco.

E, além disso, habitando a velha casa de família que adquirira anos antes, eu poderia não só emular os gestos dos meus antepassados, mas fazer uma espécie de diagnóstico diferencial da infância, separando o que de facto acontecera daquilo que a minha mente efabulara para preencher os espaços em branco. Talvez até escrever o romance, o romance grande, quem sabe o grande romance, que há tanto prometia a mim próprio tentar escrever.

Tenho hoje uma vida mais barata, mais livre, mais saudável, mais bela e mais serena.

E não me cabe a mim determinar se esse romance aconteceu realmente. Até porque a minha grande preocupação é sempre o livro seguinte: ao pé do que procuro que o livro seguinte seja, todos os livros anteriores se resumem a sombras. Ouso acreditar, pela resposta dos leitores, dos críticos, dos editores ou dos jornalistas, que o facto de continuar aqui hoje signifique alguma coisa. De resto, creio poder dizer com suficiente convicção que, de facto, tenho hoje uma vida mais barata, mais livre, mais saudável, mais bela e mais serena do que alguma vez tive.

A urgência da esperança. 

Já se é também uma vida mais inteligente, como às vezes, imodestamente, tento persuadir-me de que é, devo-o em primeiro lugar aos pobres e ao facto de ter voltado a viver entre os pobres. A eles devo tudo o que hoje sei sobre a escassez de recursos, sobre o bem supremo da partilha, sobre a urgência da esperança e – sim – sobre quanto custa um quilo de arroz.

Dos diferentes géneros. Das diferentes marcas. Nos diferentes supermercados e mercearias.

E eu podia ter aprendido tudo isso – ou, pelo menos, boa parte disso – na cidade, sim. Mas aprendi-o no campo. Na Terra Chã, uma freguesia rural que foi rica e empobreceu. Na Terceira, a ilha das festas, das touradas à corda e de uma certa alucinação colectiva em que, estranhamente, reside grande parte do seu encanto. Nos Açores, as melhores ilhas do mundo segundo não sei quantos rankings para os quais o mundo é turismo e economia – da macro, evidentemente – e, no entanto, persistem o lugar mais pobre do país e, em muitos aspectos, da Europa.

Queria integrar tudo o que o campo me pudesse acrescentar. 

Dois cuidados, estou convencido, foram fundamentais para eu poder hoje celebrar essa experiência. O primeiro foi o esforço de manter um pé dentro e outro fora, como aliás é próprio de quem tem dois lugares. Por um lado, queria pertencer ao campo, mas sem deixar atrás a mundividência que trazia da cidade. Por outro, queria integrar tudo o que o campo me pudesse acrescentar, mas sem me deixar contaminar pelo que, nele, pudesse puxar-me para baixo.

E o segundo cuidado foi educar-me de modo a que nunca me passasse pela cabeça a ideia de que poderia industriar o campo, mostrar-lhe o caminho ou sequer elucidá-lo sobre a sabedoria que se continha nos seus modos de vida sem que, no fundo, ele próprio tivesse consciência disso. Conquanto conseguisse manter a humildade, evitando a condescendência, podia bem ser até que me mantivesse a salvo daquilo com que tantos urbanos transferidos para a ruralidade – e conhecia várias histórias trágicas – acabavam por decepcionar-se, frustrados nas suas expectativas missionárias, auto-redentoras e até moralistas que podiam perfeitamente ter ido dar às patranhas do coaching e da programação neurolinguística, e só por acaso tinham ido dar ao (e cito) “espaço rural”.

Visto do campo, o cinismo urbano reduz-se àquilo que na verdade é: uma caricatura de si mesmo. 

Que o campo seja também cruel, mesquinho e invejoso, como nos ensinaram Torga e tantos outros, tornou-se, assim, quase acessório. Ou instrumental: a espécie produzindo o seu espectáculo diário, para meu enriquecimento e talvez deleite. Também no campo a distância entre a nobreza da raiva e a abjecção do ódio é, muitas vezes, ínfima. Também no campo ignorância e arrogância se abraçam uma à outra como poderosos ímanes – como uma espécie de yin e yang do Mal. Mas, por outro lado, há menos espaço para esse misto de fanatismo ideológico, ligeireza histérica e autoritarismo da virtude a que, tantas vezes, o debate intelectual se cinge hoje. Visto do campo, o cinismo urbano reduz-se àquilo que na verdade é: uma caricatura de si mesmo. E, no lugar da solidão, está frequentemente a intimidade. Que permanece uma intimidade, mesmo no desespero – se calhar até sobretudo no desespero.

Na verdade, nada me interessa, hoje, se não for íntimo. 

Na verdade, nada me interessa, hoje, se não for íntimo. Por isso passei a dividir as terras entre aquelas onde se pode ver as estrelas e aquelas onde não se pode. E, se em algum momento o merceeiro da aldeia se engana na minha conta da semana, eu pago na mesma e passo a colocar mais atenção no que compro – sem confrontações inúteis.

Regressar aos Açores privou-me de muita coisa. 

Regressar aos Açores privou-me de muita coisa. Tirou-me um cartaz regular de cinema, por exemplo. Impediu-me de ouvir a TSF em qualquer lado. Desinformou-me sobre os novos restaurantes e as novas lojas e as novas tendências – reduziu-me o teatro, os concertos, a presença dos amigos de sempre, a companhia de boa parte da família. Deixou-me completamente – quase completamente – sem livrarias.

Mas deu-me perspectiva e noção das proporções.

Mas deu-me perspectiva e noção das proporções: o Portugal que se vê do meio do Oceano, o mundo que se descortina à distância, tem contornos tão francamente mais nítidos que, a mim, chega a parecer-me aberrante que alguma vez tenha pensado tanta coisa que pensei. Deu-me a paisagem: há algo na renovação da paisagem, nos seus ciclos incertos e inexoráveis, que permanece acima de tudo o mais. E deu-me os meus cães, o velho Melville, a sábia Jasmim, o buliçoso Gauguin: o que aprendi com eles não chega a caber neste texto – sobre a força da natureza, sobre o poder do cuidado, sobre a origem dos afectos, sobre o significado do tempo, sobre a estupidez de dois terços das dicotomias contemporâneas.

Fui readquirindo o mais que me faltava.

E, entretanto, fui readquirindo o mais que me faltava, que o século XXI tem expedientes técnicos como nenhum outro teve. Também a ele devemos este privilégio, na verdade: ao progresso.

Hoje, sou um homem feliz. 

Hoje, com a minha aldeia e os meus cães, com o meu jardim e o meu pomar, com os meus livros e os meus leitores, com os meus amigos – hoje, sou um homem feliz. Quando é que eu teria usado em público essas palavras, “um homem feliz”, nos tempos de Lisboa? Mesmo que fosse realmente feliz: que vergonha teria sido usar tais termos – que falta de gosto, que irresponsabilidade…?

Além do mais, desde quando a felicidade produziu literatura? Poucas vezes, talvez. Acontece que literatura é memória. E eu conservo a memória da infelicidade e da solidão. Conservo as impressões, conservo as histórias, conservo as personagens, conservo os lugares. Sobre eles escrevo também, à distância no espaço e no tempo. A distância tornou-se o mais negligenciado dos bens, mas nunca para um escritor. Inclusive – se calhar até principalmente – para um escritor a quem continua a acalentar a ideia de que o esperam noutro lugar (como um dia, tornando a partir, o acalentará a ideia de que o esperaram no lugar actual).

Sem alegria, até levantar-me da cama, pela manhã, seria um suplício, como chegou a sê-lo.

O regresso a casa. Agora que torno a pensar nele, talvez já nem seja bem um tema, e sim uma linguagem. Não creio que tenha esgotado ainda a minha relação com ela. Devo-lhe, hoje, a própria alegria. Creio que era Montaigne quem dizia não ser capaz de fazer o que quer que fosse sem alegria. Sei-o bem, agora: sem alegria, até levantar-me da cama, pela manhã, seria um suplício, como chegou a sê-lo. O trabalho está aí, para demonstrá-lo: sete livros nos últimos seis anos, contos em todo o tipo de publicações, centenas de crónicas com diferentes géneros de periodicidade, duas peças de teatro, um filme.

Continuo a investir contra o vento. 

Falo dos números, da quantidade, porque tudo o mais é com o leitor, não comigo. A mim, interessa-me sobretudo esta constatação: nunca trabalhei tanto como hoje. Quanto ao resto, já se sabe, não há sucesso: apenas graus de fracasso. Mas até por isso continuo a investir contra o vento. Porque não saberia viver de outra maneira – em busca da possibilidade do Bem.

Em busca da possibilidade do Bem. 

Quem não acredite em segundas oportunidades, pois está uma delas. Talvez de mais nada falem os meus livros, afinal: de uma segunda oportunidade.

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