Li recentemente, provavelmente como muitos de vocês, notícias que nos deram a conhecer que nalguns supermercados estavam a ser deitados no lixo alimentos que ainda estavam em condições para serem consumidos. Alguns eram embalados e ainda estavam dentro do prazo de validade. Como imaginam, mais do que perplexa, fiquei chocada e indignada.
Conheço algumas cadeias de supermercados e sei as muitas práticas que adoptaram para evitar o desperdício e para fazer chegar àqueles que mais precisam, os alimentos que têm em excesso. Por esta razão, estas notícias causaram-me muitíssima estranheza.
Existem estratégias de combate ao desperdício alimentar que devem ser cumpridas para o bem de todos nós e do planeta.
Em Portugal, pelo menos por parte das cadeias de supermercados que conheço, existem grandes preocupações na área do desperdício alimentar e na área ambiental. Tem sido feito um grande esforço para ajudar aqueles que mais precisam através dos alimentos que têm em excedente e que se aproximam das datas em que já não poderão ser consumidos. O circuito feito é o suposto, ou seja, são recolhidos pelas instituições que os distribuem a quem mais precisa ou nalguns casos entregues a quem distribui às instituições. Para além desta preocupação com quem mais precisa, há também o esforço para adoptar práticas amigas do ambiente. Volto a reforçar: esta é a realidade que eu conheço e, por isso, estas notícias deixaram-me ainda mais incomodada.
É curioso porque estou a escrever este texto na mesa da minha cozinha e à minha frente está a fruteira. Reparei que no meio da minha fruteira está uma laranja podre. Por acaso, não a tinha visto porque a parte que está apodrecida estava por baixo, mas com mais atenção identifiquei-a. Acho que na verdade foi isto que aconteceu. Ou seja, uma empresa pode ter práticas muito bem estabelecidas e indicações precisas sobre o que fazer em cada situação, como, por exemplo, nas situações em que os alimentos estão a aproximar-se do fim de prazo de validade, mas basta um elemento boicotar o processo dentro da cadeia para que a coisa não funcione como era suposto. Tal como esta laranja poderá, se não for tirada, ser o suficiente para me apodrecer toda a fruta da fruteira. Isto porque nem todas as pessoas têm a mesma consciência.
Nem todas as pessoas têm a mesma responsabilidade, nem a mesma noção.
Há pessoas que põem as coisas na balança do seguinte modo: de um lado tenho a trabalheira toda que me vai dar arranjar quem venha recolher estes alimentos, quem lhes dê seguimento porque com a questão da pandemia alguns dos circuitos ficaram cortados. Há instituições que passaram a ter mais dificuldades em fazer a recolha destes alimentos, e, sim, por vezes é mesmo uma dificuldade encontrar quem vá buscar os alimentos porque não podem ir os particulares. Se isso fosse possível, o problema ficava resolvido num instante, já que existem tantas famílias a passarem necessidades. No espaço de minutos estes excedentes estariam resolvidos, mas o correto é a entrega respeitar um circuito. Para os profissionais envolvidos neste processo, a quem a vida dos outros e do planeta nada interessa, está fora de questão ter trabalho a pensar e implementar um circuito alternativo que resolva o problema. Optam por pôr no outro prato da balança o conforto de não terem de se chatear com nada que não tenha a ver com a sua vida. Em casa nunca lhes deve ter faltado comida, por isso não percebem nem sentem empatia pelo sofrimento dos outros.
Vivem absolutamente alienados da realidade e não têm noção das famílias que, neste momento, em Portugal passam fome. Tomam esta decisão porque quando se sentam em casa à frente do seu prato de comida esquecem-se que há muita gente que divide o prato de comida com os filhos, para que a eles não lhes falte.
Há muita gente que vive um faz de conta, para o bom e para o mal.
E portanto é mais fácil fazer de conta que a realidade da fome não existe e que toda a gente tem comida. Logo deita-se fora simplesmente porque deita-se fora. Mesmo que assim fosse, deitar fora não. Nunca!!!! Enquanto houver uma família que esteja a passar necessidades, não se pode nunca deitar fora. Pelo lado ambiental, o planeta não aguenta mais esta gente inconsciente que o maltrata.
O planeta não nos vai dar uma segunda oportunidade. Esta é a nossa casa.
Não podemos continuar a desperdiçar quando há pelo mundo tanta gente a precisar e quando os recursos são limitados.
As frutas e os legumes encontrados no lixo podiam ter sido transformados em sopas, em sumos. Lixo é que não.
Não se pode deitar ao lixo aquilo que pode matar a fome a alguém. Não se pode.
É uma questão de consciência. É uma questão de acharmos que vale a pena ter trabalho quando o que está implicado é a vida dos outros porque não sou só eu que conto, nem tu que me estás a ler, os outros também contam.
Nota: Fotografia por Verónica Silva