Nos últimos meses tem-se assistido a um aumento de referências, oriundas de setores muito diversos, sobre o impacto que a pandemia de Covid-19 estará a provocar na Saúde Mental da população mundial e, naturalmente, também nos portugueses.
É muito positivo que esta temática seja motivo de debate, e que as entidades públicas e privadas se debrucem sobre ela, dado que os problemas decorrentes da doença psiquiátrica são pouco valorizados, face à elevada prevalência e às repercussões que efetivamente têm sobre a vida das pessoas que são atingidas por elas. Chegam mesmo a não ser consideradas, por muita gente, como doenças “verdadeiras” e incapacitantes.
Mais de 20% dos portugueses irão ter uma doença psiquiátrica ao longo da vida.
Quando se sabe que em condições “normais”, mais de 20% dos portugueses irão ter uma doença psiquiátrica ao longo da vida, será expectável que numa situação como a atual de pandemia, em que coexistem simultaneamente fatores que já separadamente provocariam maior sofrimento psicológico, o aumento da incidência de doença psiquiátrica aconteça.
Covid-19 – Um inimigo que não se vê, mas que todos sentimos
Os fatores que refiro são a doença provocada pelo SARS Cov2 em si e o sofrimento direto que dela deriva, para os próprios e para as pessoas significativas dos doentes, o luto daí decorrente para muitos, o conhecimento apenas parcial que existe sobre o vírus e a infecção.
A estes junta-se o desmesurado nível de informação/desinformação sobre a doença, a que assistimos em todo o mundo, abrindo portas a ideias rocambolescas e absurdas, que vão desde o “perigo” das vacinas, a teorias de conspiração e negacionismo em nome da liberdade individual, que tentam tornar lícita a liberdade de infetar outros com quem convivemos.
Se as vacinas têm alguns potenciais riscos, é inquestionável que existe um risco muitíssimo maior para quem é contagiado e não está vacinado. Se o conhecimento sobre a doença não é ainda completo, o que já se sabe tem permitido avanços numa rapidez sem paralelo na história das doenças no ser humano.
Mas obviamente toda esta experiência tem impacto na saúde mental das pessoas e, se numa primeira fase, a maioria de nós conseguiu lidar razoavelmente bem com os confinamentos e outras restrições, o prolongamento da pandemia que nos atormenta há quase dois anos, foi esgotando as “reservas anímicas” e provocando situações de marcado sofrimento e desespero pela impotência face a um inimigo que não se vê, mas que todos sentimos.
As estruturas assistenciais em Saúde Mental já sentem o reflexo da ressaca social da pandemia, com o aumento de novos casos ou recaída de outros já existentes, principalmente a nível da doença depressiva.
Esconder o sofrimento só o aumenta!
É factual que os portugueses estão mais fragilizados, também a nível psíquico e algumas pessoas que até agora não tinham sofrido ansiedade e tristeza em níveis patológicos, apresentam situações de desespero e desesperança, que muitas tentam esconder, pelo estigma social que a doença psiquiátrica continua a carregar.
Mas esconder o sofrimento só o aumenta, e definitivamente temos que deixar de pensar na doença mental como um sinal de fraqueza, que como tal não pode ser mostrado.
Doenças físicas e psicológicas, de igual para igual, sem diferenciação.
É urgente deixarmos de pensar em doenças físicas e psicológicas, como se fossem dimensões diferentes, às vezes até antagónicas. Todas as doenças têm uma dimensão física e psicológica, depressão, perturbações de ansiedade e alterações do sono, por exemplo, são doenças tão físicas como diabetes, hipertensão, epilepsia ou qualquer outra, tal como todas estas últimas podem provocar angústia e tristeza pelas incertezas que lhes estão subjacentes, acarretando sofrimento psicológico e repercussões na forma como apreciamos a vida.
A pandemia apenas aumentou os fatores de pressão que já existiam anteriormente, potenciando o risco de desenvolver doenças, psiquiátricas ou outras. Em todos os quadros patológicos existem dimensões biológicas, psicológicas e sociais. É sabido que uma pessoa que sofra de uma doença oncológica tem melhor prognóstico se desenvolver uma atitude combativa e de apego à vida e tiver apoio das pessoas significativas (família e amigos), porque desta forma as defesas naturais do organismo estão mais ativas para maximizar os efeitos benéficos do tratamento.
É urgente deixar de pensar na doença mental como um sinal de fraqueza.
Em jeito de conclusão, será muito provável que nos próximos anos, mesmo depois da pandemia estar controlada, surjam situações psiquiátricas de stress pós traumático ou outras, que não surgiriam se a doença provocada pelo SARS Cov2, não tivesse atingido a dimensão que todos conhecemos.