É muito importante perceber a COVID-19, traduzir o que se está a passar com a pandemia, numa linguagem que todos entendam. Depois, cabe a cada um de nós fazer a sua parte, ou seja, ficar em casa sempre que possível, evitando saídas desnecessárias e seguindo todas as regras de higiene e distanciamento social. Atitudes irresponsáveis podem levar, no limite, à morte.
Para compreendermos o que se está a passar com os números da COVID-19 em Portugal, assim como as novas estirpes que têm surgido, falei com o Dr.Francisco George, médico especialista em Saúde Pública e que foi Director-Geral da Saúde entre 2005 e 2017.
Perceber a COVID-19:
1. Dr. Francisco George, está surpreendido com os números tão elevados da pandemia em Portugal?
A atividade viral nos moldes que a vemos agora, não tinha sido antecipada. Pode haver aqui uma componente sobretudo de não estar à espera. Menos de surpresa. A verdade é que é uma situação grave, preocupante, que exige a mobilização de meios adicionais. Costumo dizer que é uma situação que exige a mobilização de reservistas e todos, naturalmente, têm de assegurar uma resposta, que é fundamental. É verdade que em termos de planeamento, as autoridades de saúde não tinham perspectivado um cenário desta magnitude. Exactamente por essa razão, agora, numa situação de emergência, estão a ser desenvolvidos esforços de resposta, mas com um planeamento frágil em termos de preparação do país para esta atividade viral.
2. Era difícil fazer de outra forma tendo em conta que ninguém podia prever que isto tivesse a dimensão que tem?
Sim. Não se adivinhava, nem se previa a dimensão, a intensidade, a malignidade da atividade pandémica, até porque é nova. Em termos científicos, nós não conhecíamos um vírus como este.
Este é um vírus que tem a sua origem zoonótica. Há ali um salto de espécie e o vírus começa a circular em seres humanos. E, ao longo deste último ano, provoca uma situação trágica em todos os continentes e, naturalmente, nos países mais fragilizados, em termos de infraestruturas de saúde pública, o impacto é maior e mais preocupante com maiores custos. Sobretudo no que respeita à pressão hospitalar e muito em particular naquilo em que se refere à admissão em cuidados intensivos, uma vez que o espaço hospitalar em unidades de cuidados intensivos é limitado no nosso país.
3. E o que é isto das estripes que tanto se fala?
Nós, num plano da linguagem científica, designamos como variantes. Uma variante resulta de um conjunto de mutações. O vírus sofre alterações e/ou um conjunto de alterações, mutações, pode dar origem a uma forma mais estável extracelular que é designada como variante. Essa variante, uma vez que tem uma composição, ou seja, um genoma diferente da anterior, pode ter características distintas. Isto é exatamente aquilo que acontece comprovadamente. Agora sabemos que estas variantes têm uma capacidade mais fácil de transmitir a infecção de ser humano em ser humano (as cadeias de transmissão) porque a contagiosidade é maior, ou seja, estas variantes são mais rápidas e atingem mais pessoas.
Como surge uma mutação? É preciso ter em conta que o vírus é uma partícula quase sem vida, é praticamente uma partícula inerte que não se multiplica, não se reproduz. No caso do coronavírus, que tem a responsabilidade naquelas espículas (proteína da espícula), tem um mecanismo chave que permite que os receptores das células da mucosa respiratória, entrem nessa célula sem a destruir. E, uma vez que o vírus penetra até ao núcleo sem destruir a célula, transmite uma mensagem, uma ordem, ao núcleo para ele fazer réplicas, cópias iguais, e é nesse processo de replicação que podem acontecer alterações. Este é um processo habitual e as alterações do vírus podem acontecer em resultado desse processo de replicação.
Agora se o vírus que penetrou nas células é um parasita nas células de um hospedeiro, neste caso, de um ser humano, que está doente, com um problema crónico (por exemplo: está a ser tratado para um cancro, está a fazer cortisona de longa duração devido a outros problemas) essas alterações ocorrem com mais facilidade. Logo, as alterações da composição do genoma do vírus que penetrou nas células, são mais frequentes, ocorrem com maior probabilidade, quando o vírus penetra células e a infecção acontece em doentes crónicos. Esta é uma das explicações para a formação de variantes. Mas, acontece que há outro tipo de explicação que tem a ver com um processo à luz dos princípios darwinistas, de adaptação do vírus. Ou seja, o próprio vírus encontra formas distintas para fugir ao controlo, neste caso, dos anticorpos que circulam naquela pessoa.
No caso concreto das variantes britânica, da África do Sul e brasileira, as alterações do genoma, da componente do património genético do vírus, são localizadas nas proteínas da espícula e esta alteração é que vai estar na origem de uma maior facilidade de transmissão, de uma maior contagiosidade.
4. No início da pandemia, diziam-nos que o vírus atacava as pessoas com uma saúde mais debilitada, mas, neste momento, há relatos de pessoas completamente saudáveis que acabam por sofrer uma série de complicações graves depois de terem sido contagiadas. Afinal este vírus ataca preferencialmente as pessoas mais debilitadas ou, na verdade, mesmo uma pessoa que aparentemente é saudável, pode padecer com problemas gravíssimos depois de contagiada?
Sim, pode. Mas é preciso ter em conta a evolução clínica da infecção. Há aqui várias etapas que convém perceber. Vamos começar pelo princípio: uma vez adquirida a infecção, que resulta da penetração do vírus nas células respiratórias, há um período de incubação, que pode ser, mais ou menos, de uma semana até ao aparecimento do primeiro sintoma. O período de incubação é o período de tempo que medeia a entrada do vírus no organismo, neste caso do coronavírus, até ao aparecimento do primeiro sintoma.
Uma vez que o primeiro sintoma é identificado, é sinal que acabou o período de incubação e começa a evolução da infecção. Todos os médicos sabem, não só pela experiência já adquirida em Portugal, como também pela literatura mundial e por todas as publicações científicas que têm sido diariamente comunicadas nas revistas médicas da especialidade, que a evolução clínica, ou seja, o quadro clínico, pode variar muito desde: não haver sinais, que se chama uma infecção inaparente (uma infecção que não tem quadro clínico), até sinais ligeiros, médios e muito graves, com um cortejo de complicações. E em função da evolução do quadro clínico, assim terá de ser a resposta.
Se os sintomas forem ligeiros ou médios, naturalmente o doente em isolamento pode ser tratado em casa, ou seja, ser acompanhado pelo telefone, protegendo o seu núcleo familiar e não tendo visitas. Mas, uma vez que possam surgir complicações e o primeiro sinal é a dificuldade de oxigenação do sangue, ou seja, a taxa de saturação de oxigénio fica baixa, o doente precisa de ser tratado com oxigenação em ambiente hospitalar. No caso da situação piorar, pode ser necessária a admissão em cuidados intensivos e ter uma respiração assistida com ventilação invasiva. Eu diria que este é o extremo.
Portanto, há aqui todas as hipóteses: ou isolamento sem sintomas em casa, ou tratamento em casa com quadro ligeiro que inclui habitualmente perda do olfacto e do paladar, ou início de problemas respiratórios que impõem oxigenoterapia em ambiente hospitalar, ou complicações mais graves que exigem a admissão em cuidados intensivos. Porquê? Não se sabe exatamente a razão desta multiplicidade de quadros clínicos e da sua gravidade.
Naturalmente, quem está mais vulnerável, mais probabilidade terá de ter complicações, ou seja, aquilo a que se chamam os factores de risco. São esses factores de risco, antes de mais nada, a idade, a obesidade, independentemente da idade, e o doente poder ter outras doenças anteriores, doenças crónicas (como, por exemplo, de origem cardíaca e/ou até respiratória ou uma situação de cancro em fase de tratamento), que podem complicar este quadro. Isto porque todos estes factores têm relação com o hospedeiro e influenciam a evolução do quadro clínico.
Nota: Fotografia por Verónica Silva