Habita em nós um desconhecido, ou melhor, muitos desconhecidos. Não somos esquizofrénicos, loucos, incoerentes: somos apenas seres humanos normais complexos. Interagimos com muitas pessoas, temos uma determinada carga genética, há uma família que nos educa, crescemos num dado local geográfico, enfim, há uma variedade numerosa de influências para sermos aquilo que somos e fazemos. Por isso enfrentamos dilemas, confusão interna e sentimentos contraditórios no nosso dia-a-dia. Há um psicoterapeuta americano, David Schwartz, que desenvolveu uma forma de intervir com as diferentes “partes” que transportamos em nós: Internal Family Systems – Sistemas Familiares Internos. Um dos mantras desta abordagem é: “todas as partes são bem-vindas”. Mantenham isto presente antes de continuarem a ler, e não é porque não confie que sabem ler, mas vou repetir: mantenham bem presente que todas as partes internas são bem-vindas.
Todas as partes são bem-vindas
A psicoterapia, tal como outras áreas de conhecimento também tem temas que estão na “moda”. Neste momento, a grande tendência é criar ou permitir o movimento intra-relacional, ou seja, criarmos uma relação connosco, interagirmos com a totalidade do que somos e integrarmos isso na nossa identidade.
Sou uma pessoa educada, apreciadora de regras, reflexiva, mas não sou pontual… é uma das minhas partes feias. Tenho de estar sempre atenta para não falhar nas horas. Outro exemplo é o “gene do bacalhau”: nascer em Portugal, crescer numa família portuguesa em qualquer parte do mundo é quase sinónimo de gostar de bacalhau, faz parte da nossa identidade.
As nossas partes boas são mais fáceis de aceitar, os obstáculos surgem com as partes más e feias. No entanto, caso não as integremos, elas não desaparecem: alojam-se em nós, fora da consciência, afetando significativamente a nossa saúde física e mental. E, como tal precisamos de demonstrar auto-compaixão com essas partes feias que qualquer ser humano carrega. Sem essa auto-compaixão, não há integração das partes feias na nossa identidade, logo não há um ser completo, logo estou a negar partes do que sou.
O direito à zanga e à tristeza
Por isso defendo o direito à zanga e à tristeza (para já falemos apenas destas duas emoções básicas). Sentir a sensação de tristeza ou de zanga conscientemente é um ato de honestidade para connosco. Nada mais do que isto: sentir a sensação visceralmente, experienciar (outro conceito que está na moda em psicoterapia), sem julgar, pensar sobre, interromper o processo. Mas, eis que podem surgir obstáculos neste processo psicobiológico saudável: a uma mulher será mais difícil sentir e aceitar a zanga internamente, sem comprometer a ideia de que uma mulher é acima de tudo paciente e cuida dos outros. Aliás, uma mulher zangada é muitas vezes vista como “histérica”. Por outro lado, um homem terá dificuldades em permitir-se entristecer, até chorar em solidão. Um homem chora quando perde um jogo de futebol. Em outro contexto é sinal de fraqueza e a negação de ser homem. E assim, devido a uma equação de fatores, partes nossas, (legítimas, bonitas ou feias), são negadas e impedidas de fazerem o seu processo de integração, roubando-nos a plenitude da nossa identidade. O preço que pagamos? A impossibilidade de nos afirmarmos como somos no nosso quotidiano.