Mas como é que já tenho a Páscoa à porta? Parece que ainda foi ontem que consegui sobreviver ao Natal. Ainda estou a sarar feridas desse encontro com aquela que é a data festiva. A Data.
E agora já tenho de lidar com a outra data, a irmã d’A Data?! A Páscoa?! Mas sabes uma coisa? O problema não é a data! Nunca foi! Raios, continuo a gostar de trincar uma amêndoa de chocolate ou de molhar o bolo-folar numa caneca de café da avó. Tanto como qualquer uma de vocês.
O problema é a antecipação. A antecipação dá-nos tempo suficiente para imaginarmos todos os possíveis cenários. Quando estás a aprender a viver numa realidade que não queres, na tua nova realidade onde a vida te roubou nos afetos, a imaginação não te leva para campos de algodão doce e chuvas de bolas de sabão. Não! Leva-te para cenários bem mais negros, com vulcões de lava borbulhante e chuvas de rochas e cinza. Foi isto que imaginei na minha primeira Páscoa!
A antecipação demorou o que mais pareceu uma eternidade. E dentro dessa eternidade conheci níveis de agonia que não imaginava serem possíveis de existir.
Descobri capacidades de negociação que não acreditava ter dentro de mim. Nem imaginas como é possível redimensionar a importância das coisas, dos momentos, da vida, quando estamos em pura agonia.
A Agonia
Para que percebas, deixa-me explicar-te o que acontece quando este sentimento se instala em ti. Este surge de forma crescente. Começa com uma pequena sensação de desconforto. Não estás bem em lado nenhum. E por mais que mudes de sítio, de momento, de plano, nenhum deles parece ser suficiente. Ficas com a sensação de que falta algo. Estás permanentemente incompleta.
Então andas permanentemente em busca do que te falta. Outro sítio, outro momento, outro plano. Nova esperança. A mesma desilusão. Não estava lá quem te faltava. E em cada confronto, um outro banho de realidade.
É a realidade, é certo. É a realidade que tens. Não tens outra. Mas dói como o raio. Pois não é a que queres para ti. Sabes, ou melhor, sentes dentro de ti que é um outro tipo de dor. É crónica e sufocante. Perdura no tempo e consegues senti-la a crescer dentro de ti. Se a quisermos classificar talvez possamos balizar os seguintes níveis:
Num nível 1, tens a tal sensação de desconforto: “Só estás bem onde não estás”. No último nível, talvez um 5, percebes que todas as negociações que fizeste com o tempo falharam. O pânico toma conta de ti. A esperança dá lugar ao fatalismo. O ar começa a faltar. Por mais que tentes inspirar, não há oxigénio suficiente no mundo para encher os teus pulmões. Sentes uma pressão no peito, como se o pendente do teu colar fosse um pedregulho. Fisicamente estás exausta. Mentalmente estás quebrada.
A Negociação
A realidade que tens à frente não é a realidade que queres para ti.
Queres a outra que tinhas há um ano atrás. Aquela onde contavas ansiosamente os dias que faltavam para essa data festiva. Essa onde tinhas quem mais querias, ali, ao teu lado. Mas hoje estás a viver outra vida. E agora também fazes a contagem decrescente para a data festiva. Mas não porque anseies a sua chegada. Mas sim porque temes que chegue.
Contas os dias, em agonia, negociando ao segundo para que o tempo se atrase um pouco. “Oh Páscoa, não tenhas pressa em vir!”, rogas-lhe tu nos teus pensamentos. Mas ela não te dá ouvidos. Obedece cegamente ao tempo. E tu já sabes que ele, o Tempo, é um brincalhão. Passa a correr quando não queres e demora uma eternidade quando precisas que ele se despache.
Continuas a negociar. “Então, se não o atrasas, pelo menos diminui a importância ao dia”, pedes-lhe tu. Mas numa resposta pronta, o Tempo diz que isso está fora da competência dele. Essa secção pertence ao Amor. Viras-te para o Amor, na esperança que este te ajude a pôr um fim ao teu tormento. Mas ele apenas sorri.
O dia não é dele. Não o pode controlar. É dos outros. É de todos. Era o meu também, até eu me recusar voltar a vivê-lo. Explicou-me ele. “A escolha foi tua”, continuou. Pois, mas não a senti como uma escolha. Quem no seu perfeito juízo iria escolher viver desta forma?! Quem iria querer viver um dia que obrigasse a revisitar memórias de um passado recente, onde a felicidade era o rosto de quem amava?! Quem iria querer ver essas memórias desvanecerem segundo após segundo, numa permanente recordação de que o nosso amor ficou preso num momento do tempo?! Quem?! Eu não! Nem tu, acredito!
Negoceias, porque te sentes encurralada, sem saída. Presa numa escada rolante que te aproxima a ritmo certo, ao único lugar no mundo onde sabes que não queres estar: a mesa que vai celebrar a quadra festiva, onde vais contar nove lugares onde deveriam ser dez.
A Libertação
O dia chega. Pensavas que ias morrer de dor. Sufocada na incapacidade de inspirares o ar que te envolve. Mas não. Surpreendentemente, não morres. Continuas viva. O corpo dói, foi muita exaustão. A mente está dormente, foi muita negociação. Mas tens vida dentro de ti. O ar continua a entrar e a sair.
Abres os olhos e a escada rolante deposita o teu corpo junto à mesa onde estão todos reunidos. Todos menos um. Todos menos quem mais falta te faz. Agora já sabes. A grande verdade da qual tentaste negociar a tua inocência. De que continuas viva.
O teu amor não volta. E tu continuas a viver a tua vida. Que contas em marcos de tempo que te recordam através das datas festivas que agora, a partir de agora, a mesa só conta nove lugares.