Os sonhos são uma constante da vida

Ana Caetano // Dezembro 19, 2020
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Ao longo da história atribuiu-se aos sonhos diversos significados, desde premonições, comunicações com o além ou visões magnetizantes a que nos agarramos para nos projetarmos no futuro com o que desejamos no presente. Mas há um aspeto relevante desta temática: a importância de sonhar e a manutenção da nossa saúde mental. Sabia que cada um de nós pode olhar para os seus sonhos como uma via de comunicação com o seu inconsciente e perceber o que o afeta a um nível mais profundo?

Sonho causado pelo voo de uma abelha ao redor de uma romã um segundo antes de acordar, 1944, S. Dalí

A importância de sonhar

Vários autores afirmam que os sonhos são uma forma de lidarmos de modo seguro com a ansiedade que a vida nos apresenta, sendo que os sonhos serão uma forma de organizar e integrar conteúdos promotores de mal-estar. Por exemplo, um sonho recorrente relatado pelos presos dos campos de concentração nazi quando se encontravam detidos era o seguinte: estavam com os seus familiares, em casa, todos fazendo a sua vida diária e tentavam falar-lhes ou gritar-lhes para serem libertados do campo. No entanto, não conseguiam falar ou, quando o conseguiam, não eram vistos ou ouvidos, como se fossem fantasmas na casa. A interpretação que alguns fizeram deste sonho foi o de que este traduzia o medo subjacente de que ninguém acreditasse nos seus relatos de sofrimento, outros apontaram a impotência sentida perante a situação.

Os sonhos ajudam na manutenção da nossa saúde mental

O neurocientista finlandês Antti Revonsuo refere que os sonhos são uma forma do indivíduo ensaiar estratégias para lidar com conteúdos ameaçadores sem estar em contato com a realidade, algo como um simulador de voo, que permite, assim, um treino de competências sem o perigo de falhar na realidade. Assim, quando olhamos para os nossos sonhos, podemos encará-los como protetores da nossa vida mental.

Qual a diferença entre um sonho e um pesadelo?

Os sonhos podem ser agradáveis ou desagradáveis, mas são sempre positivos para a nossa saúde. Os sonhos podem ainda distinguir-se consoante terminam o percurso de processamento da informação e os que findam abruptamente antes de acontecer uma resolução. Os primeiros são sonhos enquanto os segundos são mais conhecidos como pesadelos. Os sonhos podem deixar-nos perturbados acompanhando-nos, por vezes, ao longo do dia, mas cumpriram a sua função de limpeza e ensaio de estratégias. Os segundos alertam-nos para algo que sentimos como ameaçador, mas não encontramos a força interna que conduza a uma resolução.

O melhor interpretador de sonhos é o próprio sonhador

Quando, no consultório, alguém refere que teve um sonho perturbador, gosto de propor à pessoa que analisemos e interpretemos o conteúdo e a forma do sonho. A primeira coisa que digo é: “O melhor interpretador de sonhos é o próprio sonhador, uma vez que todos os conteúdos presentes no sonho são específicos de cada pessoa. Eu até posso oferecer uma interpretação, mas se não fizer sentido para a pessoa, não faz sentido e sobrepõe-se o que o sonhador entende ser importante”.

“Porque sonho tantas vezes com a mesma coisa?”

Partilho convosco uma situação de análise e interpretação de sonhos que ajudou alguém a compreender o que estava a viver no dia-a-dia, principalmente porque era um sonho recorrente que a deixava bastante perturbada. Sonhava sistematicamente que não tinha terminado a faculdade embora exercesse a profissão como se o tivesse feito. Falava da aflição de ter de terminar a faculdade para continuar a trabalhar. 

A importância dos sonhos na psicoterapia

Num primeiro momento é importante perceber se a pessoa tem a sensação de o sonho ter ou não terminado. Se o sonho terminou é bom sinal: a função biológica de processamento de conteúdos foi atingida. Caso se assemelhe mais a um pesadelo, em que acorda com falta de ar, a chorar ou a gritar, é muito relevante identificar o que incomoda tanto naquele conteúdo.

De seguida investigamos se a pessoa está a vivenciar alguma intensidade emocional ou se sente que há algo que está a colocar em causa a sua competência para gerir o seu quotidiano. Neste caso lembro-me de a pessoa referir que estava a ter muitas solicitações no emprego e que se questionava se estaria ou não à altura de tanta procura. 

O que os sonhos nos podem ensinar sobre nós próprios?

Ao explorarmos o conteúdo do sonho constatámos que faltava às aulas na faculdade – não tendo apontamentos para estudar – e que se esquecia sistematicamente de anotar a data de um exame. À medida que íamos explicitando os conteúdos e as emoções associadas, identificámos o medo subjacente de falhar e desiludir quem em si confiava na esfera profissional. Foi também interessante perceber como as suas falhas de organização no mundo real – não cumprir horários e sem tempo para fazer as leituras que considerava necessárias – coincidiam com não ter os apontamentos e desconhecer a data de realização do exame. Tinha este sonho várias vezes por mês, às vezes várias vezes na mesma semana. 

Ao longo do tempo a pessoa habituou-se a medir o seu medo de falhar pelos sonhos que tinha. Caso sonhasse que lhe faltavam poucas cadeiras para terminar a licenciatura, percebia que sentia pouco medo… Caso estivesse ainda no primeiro ano, o medo de falhar era acentuado. A partir de determinada altura este sonho tornou-se um momento de boa disposição entre nós e uma excelente ferramenta para gerir a ansiedade inconsciente.

Afinal, qual é a verdadeira função da ansiedade?

A palavra ansiedade entrou de tal forma no nosso dia-a-dia que quase perdemos o rastro da sua importante função na nossa vida: a de sensor pessoal de potenciais perigos perante o que nos rodeia. Olhemos para o estado de ansiedade como o equivalente a um termómetro da febre: há uma ansiedade (temperatura) ótima que nos indica se estamos numa situação de segurança ou insegurança. Se for excessiva, relembra-nos a importância de nos protegermos antes de se atingir uma temperatura de tal forma elevada que nos remete para o delírio, sem capacidade de cuidarmos de nós. 

Sonhar é preciso

Os sonhos são mais uma forma de contactarmos com os mecanismos de autorregulação da nossa ansiedade. A par da tensão muscular que pede atividade física, dos ataques de pânico que nos pedem que abrandemos e respiremos adequadamente, os sonhos explicitam-nos os nossos conteúdos emocionais inconscientes para os integrarmos como parte do que somos e prosseguirmos o dia-a-dia. Como diria António Gedeão na voz de Manuel Freire: “O sonho é uma constante da vida, tão concreta e definida como outra coisa qualquer (…)” até nos seus aspetos meramente biológicos.

Desejo-lhe: bons sonhos e boas interpretações!

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