O que é uma doença mental?

Diogo Telles Correia // Outubro 10, 2018
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Temos obrigação de nos preocupar com o fenómeno da crescente disseminação da doença mental por toda a população. Num estudo da Universidade de Michigan, verificou-se que cerca de metade da população irá padecer de qualquer tipo de doença mental ao longo da sua vida.  Por outro lado, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que em 2020, 15% do peso/incapacidade provocada por qualquer doença (incluindo doenças oncológicas) seja provocado pela doença mental. Isto significa que existe um sofrimento psíquico crescente na sociedade. Temos de nos preocupar, compreender o porquê deste fenómeno.

O que é uma doença mental?

A definição mais consensual é a que foi lançada pela Associação Americana de Psiquiatria no DSM-III – manual que discrimina de forma muito clara a classificação das perturbações psiquiátricas (e que hoje ainda é amplamente aceite). Este começa por fazer uma definição lata de doença mental como uma “síndrome ou padrão comportamental que ocorre num indivíduo e que se associa tipicamente a sofrimento e incapacidade em uma ou mais áreas do seu funcionamento”. Estas são as características de base de qualquer perturbação mental e que subentendem sobretudo a noção de dano no paciente, mental e funcional. E, considera-se que, mesmo que não se descubra uma causa biológica ou física para elas, as doenças mentais existem porque causam sofrimento humano.

Há quem continue a negar as doenças mentais só porque estas podem não ser causadas por uma lesão bem localizada no cérebro ou noutro órgão (como acontece na maioria das doenças médicas). Mas, será correto que a aceitação da existência das perturbações psiquiátricas, tão próximas da condição humana e sua subjetividade, depende unicamente de provar a sua natureza biológica?

Quais são os limites entre a normalidade e a doença?

Não parece haver limites rígidos entre o normal e o patológico no que se refere às perturbações psiquiátricas. Por exemplo, características como o humor podem variar sem serem patológicas, quando estamos felizes, por exemplo, temos um humor quantitativamente aumentado. Mas, podem também atingir níveis considerados patológicos de euforia desmesurada e desproporcional. O humor pode estar normalmente reduzido, quando estamos tristes com algo que tenha ocorrido, mas pode também atingir níveis considerados patológicos quando, mesmo que motivado por alguma situação de vida, é desproporcional e provoca um sofrimento importante (podendo até motivar ideias de suicídio) e uma incapacidade grande nas atividades diárias. O mesmo se passa com a ansiedade e outros sintomas psíquicos.

Mas, algo de muito semelhante acontece com algumas situações de doença física, a hipertensão, por exemplo, o colesterol ou a diabetes, nas quais há uma relação linear entre níveis normais e níveis considerados patológicos. No entanto nas doenças físicas há também situações de descontinuidade entre o normal e o patológico. Por exemplo, no caso do cancro, não há uma verdadeira continuidade entre o normal e o patológico: há uma célula que, de repente, por uma mutação, começa a funcionar anormalmente, o que marca o início de uma situação neoplásica.

Em Psiquiatria pode haver casos em que se considere que houve uma descontinuidade. Por exemplo, quando um pensamento completamente novo, irracional e desprendido de qualquer contexto do paciente surge subitamente — por exemplo, na esquizofrenia, quando um paciente que tinha um funcionamento normal e que nunca tinha falado de Deus, num ambiente familiar não-religioso, subitamente inicia pensamentos de ser “um enviado de Deus, para redimir o mundo, para impedir que o mundo expluda”. Neste caso há uma descontinuidade, algo de novo e incompreensível aparece no paciente e perturba-o.

Mas, na maioria dos casos, o que acontece nas perturbações psiquiátricas é considerado como estando em continuidade com o que acontece na vida normal das pessoas. Variam em dimensionalidade. Simplificando, por exemplo podemos falar numa dimensão do humor em que os níveis mais baixos são considerados depressão patológica, os níveis médios variações normais do nosso dia-a-dia e os níveis mais elevados episódios de euforia desmesurada. Os dois extremos desta dimensão podem ser considerados patológicos, porque provocam sofrimento e incapacidade no funcionamento social, ocupacional, profissional nas pessoas que os experimentam.

Quais são as principais causas da doença mental?

O modelo de causalidade em Psiquiatria é também complexo. Ou seja, há vários factores que podem contribuir para o aparecimento de uma doença mental. Entre eles factores genéticos, que herdamos dos nossos pais, a nossa aprendizagem ao longo da vida, aquilo que vemos os outros fazerem e como se comportam, situações de vida indutoras de stresse, tanto actuais como passadas (perda de um ente querido, separação amorosa, conflito laboral, violência trauma de guerra ou qualquer situação traumática passada), exposição a estupefacientes (drogas ilícitas ou álcool).

No entanto, a sua causalidade não é linear, como uma bactéria que causa uma pneumonia ou o vírus que provoca a gripe. Todos estes factores interagem entre si. Por exemplo, se temos tendência para ter uma personalidade instável (o que depende dos genes que herdamos dos nossos pais e das aprendizagens que tivemos em criança), podemos ter uma maior propensão para rupturas amorosas e, consequentemente, depressões reactivas a estas situações. Num outro caso, podemos ter geneticamente uma maior propensão para desenvolver dependências com drogas ou álcool, que por sua vez podem predispor ao aparecimento de doenças mentais (como o uso de cannabis, que pode precipitar o desenvolvimento de esquizofrenia, em quem já tenha essa predisposição genética). Vemos, assim, que, na origem das doenças mentais, há uma interacção grande entre factores genéticos e ambientais.

Por outro lado há factores relacionados com o meio social em que vivemos (meios com diferentes tipos de pressões ou exigências sociais e profissionais), que podem precipitar de forma diferente as doenças mentais.

Algo que ainda complica mais a situação é que também o nosso contexto sociocultural e geográfico interfere com a forma como as nossas doenças mentais se manifestam. Há regiões em que é culturalmente pouco aceite a manifestação de emoções e nas quais a depressão pode expressar-se com mais frequência através de dor ou de queixas corporais. Por outro lado, o recurso a consumo excessivo de álcool em resposta ao mal-estar psicológico pode também ser mais aceite culturalmente em determinadas regiões podendo, aqui, o alcoolismo ser uma manifestação da depressão ou ansiedade.

Daí que a forma de avaliar e actuar sobre a doença mental, requer a consideração de todos estes factores. Por outro lado, é por estes motivos que é tão difícil descobrir uma causa biológica específica da doença mental e ser fundamental que se sigam modelos específicos para estudar a doença mental.

Como vai actuar o psiquiatra?

Com uma boa preparação e muita experiência, o psiquiatra consegue depreender qual o peso relativo dos factores biológicos (genéticos, baseados na história familiar) e qual o peso dos factores ambientais (factores indutores de stresse, passados ou presentes). Este facto pode ser determinante para se decidir o melhor tratamento (psicoterapêutico e/ou farmacológico). Por exemplo, numa depressão que se depreenda ser mais provocada por factores biológicos, o tratamento farmacológico pode ser mais determinante do que numa provocada por factores indutores de stresse, como um conflito amoroso, em que a psicoterapia é mais importante. No entanto é fundamental sublinhar que o impacto dos factores indutores de stresse pode ser tal que também os factores biológicos são afectados e seja imprescindível recorrer a medicação.

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