Não é amor, é uma relação tóxica

Diana Cruz // Fevereiro 26, 2024
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relação tóxica
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“Nas relações tóxicas só existe espaço para um.” Esta é, habitualmente, a minha primeira resposta quando alguém me pergunta como é que pode perceber se está numa relação tóxica.

O que eu quero dizer com isto é que as relações tóxicas revelam um padrão em que um parceiro tem comportamentos que são prejudiciais emocionalmente, podendo também sê-lo fisicamente. O tipo de violência que encontramos nestas relações é, regra geral, menos óbvio e explícito, sendo mais frequente a violência psicológica – aquilo a que chamo o terrorismo emocional – do que a violência física.

Estas relações são pautadas por falta de empatia do parceiro tóxico, desrespeito pelos limites do outro (mesmo quando estes são expressos explicitamente) e comunicação hostil ou agressiva, marcada por crítica constante.

A estas características soma-se que o parceiro tóxico encara a vítima como alguém que existe na relação para corresponder às suas expectativas, para colmatar as suas necessidades e regular as suas emoções. Não existe espaço para a individualidade e necessidades da vítima, ela é instrumentalizada em prol das necessidades do parceiro tóxico. O parceiro tóxico tem a expectativa e faz a exigência de que seja a vítima a “adaptar-se” totalmente, a “moldar-se”, negando a importância de também ele próprio trabalhar ativamente na construção da relação.

A verdade é que, na maioria dos casos, estamos na presença de um companheiro com características muito egocentradas ou narcisistas. Ele não se preocupa verdadeiramente com o bem-estar da outra pessoa; esta é um instrumento dos objetivos do parceiro narcisista.

Mas se realmente assim é, porque é que alguém inicia e permanece nestes relacionamentos?

Estas relações revelam um ciclo de existência muito característico e que faz com que elas se tornem tão traumáticas. Inicialmente, o parceiro tóxico apresenta-se como a pessoa “ideal” para si. Demonstra-se atento, apaixonado, amoroso, tem os mesmos interesses e os mesmos objetivos de vida que a parceira tem. São “almas gémeas” e a relação parece ser um “conto de fadas”. O parceiro tóxico faz isto mimetizando uma relação de partilha profunda, como se fossem parecidos em tudo, tivessem os mesmos interesses, objetivos de vida e necessidades, são “100% compatíveis”. Para além disso, ele utiliza love bombing (bomba de amor) como forma de aumentar a atração, ou seja, ele inunda a vítima de elogios, declarações de amor, músicas, mensagens… etc…. Frequentemente, a vítima sente que nunca conheceu alguém tão romântico e tão apaixonado por si.

Esta fase de sedução aumenta muito o desenvolvimento de sentimentos de paixão e amor e contribui para desenvolver um vínculo forte e “instantâneo”: ninguém quer perder a sua “alma gémea” pelo que a partir deste momento a pessoa que é seduzida fica muito vulnerável e tudo fará para manter esta relação, mesmo quando ela entra na fase seguinte.

Numa segunda etapa, o seu parceiro deixa de parecer perfeito e começam as agressões e as verdadeiras dificuldades. A vítima passa a ter acesso à pessoa que o parceiro realmente é, a verificar como ele é autocentrado e desinteressado das necessidades dela. A comunicação é hostil, crítica e ofensiva. Para além disso, o controlo passa a ser muito óbvio com o total desrespeito pela privacidade e autonomia da parceira, ciúme e desqualificação, contribuindo para uma situação em que a parceira fica cada vez mais isolada dos seus amigos e família e com sentimentos de inadequação, que contribuem para que ela se ponha em causa, às suas competências e até à sua capacidade de julgamento e de decisão.

Com o passar do tempo, esta relação é não mais do que um padrão agressivo de interação em que a vítima não consegue suprir nenhuma das suas necessidades, sente-se confusa e não compreende porque é que a sua relação “perfeita” se transformou neste pesadelo. Os sentimentos de culpa e vergonha pelo estado da relação são habituais e contribuem mais fortemente para que a vítima queira ficar na relação para tentar “repará-la”, ao invés de querer sair.

Ao longo do tempo, tenho conversado com muitas pessoas que passaram por este tipo de relações. É verdade que se trata maioritariamente de mulheres, mas os homens também podem viver este trauma de maneiras muito semelhantes. 

Em todos os casos de pessoas que tenho oportunidade de escutar posso verificar uma quebra significativa do bem-estar, do desempenho laboral ou académico, a diminuição da autoestima e da autoconfiança que deixa estas pessoas convictas de que não conseguem sair destas relações ou as merecem. 

Muitas vezes, estas pessoas estão verdadeiramente deprimidas, com problemas profissionais porque têm dificuldade em trabalhar, e estão muito sozinhas porque foram isoladas na relação. Isso deixa-as mesmo muito vulneráveis a doença psicológica e até mesmo física.

Recuperar e libertar-se é difícil e desafiante, mas possível com trabalho e apoio, não apenas profissional, mas também da sua rede de suporte. 

Para conseguir evoluir na sua regeneração é importante que se reencontre com a pessoa que é e possa identificar as suas necessidades e competências, as suas forças e fragilidades. Existe muito trabalho de desenvolvimento que tem de ser feito, nomeadamente, na identificação dos seus limites pessoais e necessidades, e no desenvolvimento de padrões de autocuidado que lhe possam devolver a autoconfiança e o controlo da sua vida ativa, tal como acontecia antes desta relação tóxica aterrorizar a sua vida e a sua identidade.

Lembre-se que antes de tudo isto, era uma pessoa competente, independente e absolutamente capaz de tomar decisões acerca da sua própria vida. Regenerar-se implica compreender que parte de si se ligou ao seu parceiro tóxico e regenerar o seu sistema de crenças para que, futuramente, esteja mais fortalecida e possa encontrar relações verdadeiramente de amor.

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Tenho vindo a compreender, através da experiência que as crenças que temos em relação ao amor, representam uma parcela muito importante deste trabalho de regeneração. 

O Amor não é um bem de consumo rápido, perecível, que nos obriga a desistir de tudo aquilo que somos e fazemos

O Amor implica compromisso e adaptação sim, mas adaptação mútua. É um trabalho, um investimento, que fazemos em algo que vale a pena porque reconhecemos o valor do outro e o valor da relação. Ao longo dos tempos, temos recebido pistas de que o “verdadeiro” Amor parece um conto de fadas e que devemos procurar alguém que seja “tal e qual” como nós, completamente compatível. Estas crenças precisam de ser desmistificadas: o Amor, assim como o nosso bem-estar, implicam tolerância, aprendizagem e muita partilha.

No Amor, tem de haver lugar para dois.

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