Numa destas semanas de confinamento falava por Skype com uma pessoa que acompanho, a qual expressava a sua estranheza em não sentir ansiedade ou medo. Apesar de trabalhar com doentes Covid-19, havia algo que a mantinha a funcionar no modo pleno: o melhor perante as circunstâncias. Analisando a situação, ela estava a desempenhar a sua missão de vida: ajudar os outros perante uma situação de perigo fazendo jus à sua escolha profissional, ao seu propósito. E daí a calma perante uma situação de risco.
Temos lido e observado como médicos e enfermeiros se devotam, dia após dia, aos seus doentes, mesmo sob condições de saúde que os podem prejudicar. É simplesmente admirável o espírito de missão. Suscita curiosidade saber o que subjaz a esse espírito de missão, essa força que nos impulsiona para além dos cuidados com a nossa sobrevivência e conforto, onde um propósito continuado para as nossas ações nos norteia sobre o caminho a seguir. Na classe médica há um momento que marca a assunção desse espírito de missão: o juramento de Hipócrates onde, a certo passo, se lê: “Exercerei a minha arte com consciência e dignidade. A Saúde do meu Doente será a minha primeira preocupação”.
Uma missão ou propósito alimenta-nos em situações difíceis e dolorosas.
Se todos tivéssemos um momento de juramento sobre qual o nosso propósito de vida seria mais fácil perceber o que nos impulsiona dia após dia. Aliás, um dos pedidos mais frequentes formulados em consulta é perceber o que se gosta de fazer, o que nos alimenta. Fizemos a escola com mais ou menos empenho, a vida proporcionou mais ou menos oportunidades, escolhemos algumas vezes, outras vezes a vida escolheu por nós. Sucede que algumas escolhas do passado tornam-se mais tarde insuportáveis: trabalhar em engenharia quando aquilo que se quer é criar um negócio de cake design, ter começado a trabalhar cedo quando agora se deseja ter continuado a estudar. Há um peso que nos arrasta os dias, tirando-nos força, principalmente quando não vemos alívio no curto prazo.
Como encontrar esse propósito de vida?
Deixo-lhe quatro pontos para refletir:
- Antes de suspirar e dizer que não vale a pena e nunca gostou de nada, espreite por cima do ombro para a sua vida e observe o que lhe trouxe realização na vida até esse momento. Para muitos o seu propósito centra-se apenas no trabalho, mas também pode passar por criar uma família feliz, cultivar amizades leais ou um passatempo. É frequente aperceber-me, no consultório, quão pouco as pessoas se conhecem. A grande base para encontrarmos o nosso propósito reside no autoconhecimento, uma vez que só sabendo o que nos anima e preenche é que podemos perceber melhor como fazer as nossas escolhas;
- Por vezes fez-se opções com base no (auto)conhecimento incompleto do passado e ignorou-se a falta de chama ao longo do caminho até que o mal-estar se tornou incontornável. Não ignore os sinais que recebe de si próprio no que respeita a não se sentir bem numa situação pessoal ou profissional. Não é preciso mudar de imediato e radicalmente, mas perceba como pode ajustar as suas escolhas para o futuro;
- Outras vezes a pessoa sente-se presa a um emprego porque tem de criar uma família e não pode simplesmente optar pela atividade que deseja. Já explorou todas as possibilidades do seu trabalho? Será totalmente desprovido de propósito? Já reparou que, durante a quarentena, pessoas com a profissão de estafeta, repositor de supermercados ou funcionário de limpeza foram subitamente valorizadas? Estas profissões nunca deixaram de ser essenciais, mas foi preciso a quarentena para lhes dar a atenção merecida;
- Finalmente, recorde-se que podemos mudar se nos focarmos no que queremos… e, assim, regressamos ao primeiro ponto: autoconhecimento para saber o que queremos mesmo fazer.
Vista o papel de Tom Cruise quando ler o que se segue: a sua missão, caso a queira aceitar, é…conhecer-se no seu melhor e pior, a sua grandeza e fragilidade, até descobrir na sua essência o que lhe dá força para continuar dia após dia. Esta missão pode levar meses de autorreflexão, outras vezes anos, mas não desista, persista neste caminho de auto-aprofundamento. Cada um de nós encerra um universo desconhecido que precisa de ser explorado.