Os 3 anos que vivi em Moçambique, foram suficientes para marcar para sempre a minha visão da vida e das pessoas. A falta de quase tudo andava de mãos dadas com a imensa riqueza de afectos e de alegria. Nada parecia justificar que se perdesse a capacidade de ver a beleza da vida. O pouco em termos materiais, era sempre tanto e o que até aí conhecia como fundamental, passou a ser acessório. Agradeço aos moçambicanos estas lições fantásticas que me deram e que contribuíram decisivamente para a pessoa que sou hoje.
Em 2006 surgiu a primeira oportunidade de participar numa missão humanitária fora de Portugal. Destino: Senegal, onde iria decorrer o rali Dakar. A ideia era mostrar que ali ao lado, por onde os pilotos passavam a uma velocidade desenfreada de quem luta contra o tempo, existia a realidade de um povo com múltiplas carências básicas e para quem tudo acontecia infinitamente mais devagar.
A SIC arranjou um parceiro, um hipermercado e assim se juntaram toneladas de alimentos que tínhamos de fazer chegar ás populações. Havia um grupo de voluntários que iria por terra com jipes. Eu, o João Patrício, na altura meu operador de câmara e homem multifunções e a produtora Joana Leitão, fomos de avião. O João Patrício era já naquela altura a pessoa em quem eu mais confiava para fazer este trabalho. Com uma sensibilidade especial, conhecendo-me como ninguém, faríamos com certeza um trabalho ao nível do que aquelas pessoas mereciam. Quando chegámos, o cenário era o esperado: um povo pobre, mas muito humilde e grato por se terem lembrado deles.
No dia seguinte deixámos o hotel de palhotas onde ficámos alijados e seguimos em direção a uma das aldeias onde iam ser distribuídos os alimentos enviados. Tínhamos o apoio da Cruz Vermelha local para fazer esta visita, até porque existiam muitas regras culturais e de hierarquia dentro das aldeias, que era preciso conhecer e saber respeitar. As crianças foram as primeiras a aproximar-se de nós, sem medo da parafernália de carros e gente desconhecida que ali chegava. Depois da entrega dos sacos ao chefe da aldeia e distribuição a algumas famílias, as crianças ganharam mais confiança em nós.
Uma menina, muito pequenina, deveria ter 2 ou 3 anos, aproximou-se de mim e colou-se à minha perna. Peguei-lhe ao colo e automaticamente aninhou-se no meu pescoço, ali ficando sem pressa e sem nada dizer. Às tantas ouço uma mulher dizer-me algo, em dialeto. Não compreendi e esperei que o tradutor me ajudasse. “Está a dizer que a pode levar…à menina”. Fiquei sem reação. Aquela mulher, que depois soube ser a mãe, estava a oferecer-me a sua filha, esperançosa que eu lhe desse o futuro que ali nunca teria. Emocionei-me e com um sorriso disse que não a podia levar. Sai daquela aldeia perturbada e com a imagem desta menina na cabeça.
Um ano depois voltei a fazer uma missão humanitária no Senegal, desta vez para entregar roupas, cobertores e material escolar. Isto porque no ano anterior, tinha visitado um campo enorme de famílias desalojadas, vítimas das cheias e o que mais nos pediram foi cobertores. Nesta segunda visita, voltei à tal aldeia e esperei ver a menina no meio das crianças. Não estava. Quando já me preparava para vir embora, eis que ela apareceu vinda não sei de onde. Reconheci-a de imediato. Baixei-me, abri os braços e ela deixou-se abraçar, aninhando-se de novo em mim. Foi uma sensação muito boa, mas estranha ao mesmo tempo. A facilidade com que se entregava a esta estranha, que provavelmente não voltaria a ver. Foi por isso que nunca a esqueci e a batizei, a minha princesa senegalesa.
Fátima Lopes