A Sofia, de 34 anos, tem tudo para ser feliz… pelo menos é o que ela me diz quando se senta no consultório: uma família estável, uns pais que a amam (e estes amam-na mesmo, a Sofia não está enganada), um bom emprego, com um salário adequado para preencher as suas necessidades, um marido que a ama (e também é verdade, não está enganada). Mas há um vazio que a acompanha do qual não se consegue livrar. Mesmo nos seus melhores momentos, a sensação de “vazio no peito” não a larga. Mais recentemente começou a ter problemas de dores continuadas no peito e aperto na garganta. Dorme mal e, por vezes, acorda com a sensação de falta de ar. É assídua no ginásio e pratica exercícios de mindfulness. Sente-se perdida sobre o que se está a passar consigo e refere que estas situações estão a retirar-lhe concentração para o trabalho e família. As consultas e exames médicos no último ano não revelaram qualquer problema físico e foi aconselhada a consultar um psicólogo.
O diálogo corpo-cérebro
Nos últimos anos a investigação científica tem explicitado de forma crescente a interação entre corpo e cérebro. No entanto e muito antes disso, os psis (psicólogos e psiquiatras) constatavam a verdade do provérbio latino: “Mente sã em corpo são”. Aliás, em 1953 Eugene Gendlin, filósofo de formação, estudou, em articulação com o psicólogo Carl Rogers, o que tornava bem-sucedida a psicoterapia. Gendlin ouviu horas e horas de sessões de terapia gravadas em áudio para perceber quais os pacientes que melhoravam e porquê, tendo concluído que a abordagem terapêutica em si não era a resposta… o que fazia a diferença era a forma como o paciente se relacionava consigo e com o corpo. Aqueles que tinham consciência das “sensações que sentiam” (do inglês felt sense) alcançavam melhores resultados em termos de alívio de sintomas e um aumento de bem-estar. Sentir a sensação? Tomemos como exemplo a emoção básica medo: dizer “tenho medo” é diferente de sentir a sensação de medo – nomear o conceito de medo é distinto de nos relacionarmos com o que está a acontecer dentro de nós por causa do medo, sentindo a sensação de medo. Gendlin desenvolveu estes conceitos numa abordagem: Focagem (do inglês focusing) tendo influenciado muitas escolas de psicoterapia, na atualidade.
O corpo, esse transportador da cabeça
Existe uma categorização que nos pode ajudar a compreender como diferenciar abordagens terapêuticas como “de cima para baixo” vs. “de baixo para cima (do inglês “top down” vs. “bottom up”). As primeiras partem do cognitivo e da elaboração da linguagem para reestruturar o discurso interno, com o objetivo de mudar comportamentos e a perceção da realidade. As segundas procuram a sensação sentida pela pessoa quando relata determinados acontecimentos por forma a que essas sensações se reflitam no seu corpo permitindo que se compreendam as necessidades que estão por cumprir dentro dessa pessoa. O alívio das sensações corporais permite uma clareza de pensamento que ajuda a pessoa a mudar as suas atitudes e comportamentos perante a perceção da realidade. A estas terapias também se dá o nome de experienciais: a pessoa precisa de experienciar o que está a acontecer consigo para que as emoções libertem a sua tendência de ação (medo, proteger-me; raiva, impor limites; tristeza, recolher-me; nojo, afastar-me; alegria, celebrar) que terá sido interrompida em situações do passado.
Behavioral Activation/Inhibition Systems and Emotions: A Test of Valence vs. Action Tendency Hypotheses – Scientific Figure on ResearchGate (consultado a 06 de Julho de 2023)
A caixa de correio por abrir
Voltemos à Sofia que está perdida dentro de si e na sua perceção do mundo. Uma das primeiras coisas que lhe peço é: “Pode focar a sua atenção no seu corpo, neste momento, e dizer-me o que surge depois de partilhar comigo o que são os seus problemas?”. A Sofia olha-me com ar confuso e pergunta-me: “Dentro do meu corpo como?”. Num texto anterior apresentei uma forma de abordar as emoções no corpo e, nesse momento, uso aquilo que a psicologia refere como Psico-Educação, para que a pessoa tenha um guião da tarefa: a importância de sentir as emoções . A Sofia diz que não sente nada de especial, apenas um aperto no peito e à minha insistência de dar espaço a esse aperto, em silêncio, com toda a atenção focada no que está a acontecer no seu corpo, a Sofia começa a emocionar-se e olha para mim ainda mais confusa: “Não sei o que é isto, mas estou com vontade de chorar, desculpe”. Peço para que deixe o seu corpo expressar-se como quiser e se é através das lágrimas, permita que isso simplesmente aconteça e depois logo perceberemos melhor o que está envolvido… a Sofia permite-se chorar e sucede-se um choro silencioso, contínuo e surpreendido. Após alguns minutos de silêncio em que as lágrimas finalmente param, pergunta-me o que é que lhe está a acontecer. Antes de lhe responder, pergunto-lhe: “Como está a sensação no peito?”. Leva a mão ao peito, suspira profundamente e responde com ar admirado: “Está calmo, está muito mais calmo… parece que estava a precisar disto, de pôr qualquer coisa cá para fora”. Volta a respirar profundamente e pergunta-me, a rir, se está curada. Respondo-lhe que não está curada, mas sem dúvida que começamos um processo.
O que se passou então com a Sofia? Muitos de nós atuamos como se o corpo fosse o transportador da cabeça, sem darmos espaço ao que ele nos comunica em formato de sensações corporais. Estes sms e emails que o corpo envia precisam de ser “abertos e lidos” dando-lhes atenção, permitindo que as sensações se explicitem, ampliem e desvaneçam, libertando o significado de cada uma dessas mensagens.
O corpo não é apenas o transportador da cabeça
No caso da Sofia, e após um processo terapêutico de mais de 1 ano, percebemos uma coisa sobre a sua história de vida: ao longo da sua infância ela não sentiu espaço na família para partilhar os seus medos e zangas com o mundo. A mensagem na família era: cerra os dentes e avança porque há muito para fazer. Filha de uma família de poucos recursos económicos, os pais trabalhavam muito para providenciar o melhor aos filhos. Conseguiram, por exemplo, que os filhos frequentassem uma boa escola pública por causa da morada do local de trabalho da mãe. A Sofia cedo percebeu que os colegas tinham acesso a muitas coisas que ela não tinha e, por vezes, foi gozada por não ter roupas de marca. Mas ela era boa aluna e isso foi o passaporte para uma vida que os pais só poderiam sonhar: ser “doutora”, com um bom emprego, fazer férias e aceder a cuidados de saúde privilegiados. O que também aconteceu ao longo desses anos foi a sensação de impotência sobre o que fazer com as emoções que sentia, enquanto esperava pelos pais que chegavam tarde a casa, mortos de cansaço, achava que não os podia incomodar com os seus medos, vergonhas e zangas com alguns colegas. “Era injusto estar a preocupar os meus pais com isto, coitados… sempre mortos de cansaço a darem o seu melhor. Ia lá eu falar que a Susana me tinha gozado nesse dia por causa dos meus ténis serem uma imitação mal-amanhada dos all star que toda a gente usava nessa altura… engolia tudo e agarrava-me aos livros para ter uma vida melhor.”
Mas durante vários anos não se lembrou destas coisas… O que aconteceu para que o vazio se instalasse de forma tão intensa na sua vida? Descobrimos que o peso, o sufoco e o vazio coincidiam com a entrada da filha numa escola particular onde o estatuto sócio cultural dos colegas da filha era superior ao seu. Inconscientemente a Sofia estava a reviver através da filha as frustrações e medos que nunca pode explicitar num ambiente seguro na infância. A pouco e pouco no consultório, a sensação de vazio foi preenchida pela expressão das emoções encapsuladas. Apesar de agora ter os recursos, a Sofia estava a viver no presente as sensações sentidas e não explicitadas do passado. Numa das sessões em que estávamos em silêncio, a Sofia começou a rir baixinho e depois alto e com gosto. Perante o meu ar curioso, respondeu-me: “Sabe uma coisa Ana, a minha filha odeia ténis de marca. Agora que posso comprar-lhe todos os ténis de marca que ela quiser, diz-me que não vale a pena porque fica igual aos outros todos e gosta de ser diferente. Usa ténis de marcas brancas para se afirmar, não tem medo nem vergonha de ser quem é… É porque se sente bem na sua pele, não é?… Bem, alguma coisa de bom fizemos como pais para ela se sentir assim!”.