Marielle Franco - Um Legado Psicológico que Permanece

Ana Bispo Ramires // Março 14, 2019
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Há pessoas que nos marcam, outras não.

De uma forma geral, as pessoas que maior contributo trazem para a sociedade geral, transportam em si valores herdados pelos seus antecessores (que os inspiraram) e tendem a inspirar gerações futuras na comunidade civil, científica, desportiva, empresarial ou, mais frequentemente, e com destinos tendencialmente mais “trágicos”, no que respeita à defesa dos direitos humanos.

Na realidade, transportam um legado consigo – como se fossem “guardiões” com uma energia quase inesgotável, alocada a dar visibilidade a uma dada mensagem (valores) que não é apenas sua… é nossa: por ela lutam e, infelizmente, por ela (ainda muitos) morrem.

Em boa verdade, para além da determinação com que veiculam os valores que querem propagar, muitas vezes prestam um “serviço” à Comunidade – recordar-nos de quem somos, dos direitos que nos assistem e da responsabilidade individual de cada um de nós, na luta pelos valores que decidimos abraçar – como se de um “exercício de GPS” se tratasse:

Definir o rumo que queremos percorrer entre as nossas “raízes” e o “destino” que almejamos alcançar.

Foi o caso de Marian Diamond, numa vida inteiramente dedicada à ciência e ao estudo do cérebro, num contexto onde não havia lugar para as mulheres. Foi o caso de Gandhi e Mandela, no que respeita aos Direitos Humanos, ou de Bialowitz (último sobrevivente judio polaco do campo de extermínio de Sobibor e lutador de resistência), entre tantos(as), tantos(as) outros(as) – e, esta seria uma lista infindável.

Assim foi, também, o caso de Marielle Franco.

Faz hoje um ano sobre o assassinato (considerado por muitos uma execução) da recém eleita vereadora do Rio de Janeiro (estaria a cumprir um ano de mandato). O crime ocorreu no dia 14 de Março de 2018 e consternou não só o Brasil, como toda a comunidade internacional.

As comemorações do Carnaval no Brasil, recolocaram novamente este tema sob os olhares do mundo.

Aproveitando um momento em que o Brasil detém a atenção do mundo inteiro, seja pela elevada presença de turistas no evento, seja pelo seu reconhecimento internacional, várias Escolas de Samba viriam a prestar a sua homenagem, reforçando a necessidade de apurar os responsáveis pelo crime.

Assim nasce um(a) Líder

Marielle Franco nasceu no Complexo da Maré, uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, definindo-se a si própria como “cria da Maré”. Era igualmente negra, feminista e defensora LGBT. Através da educação (formada em Sociologia, com mestrado em Administração Pública) e da sua militância a favor das minorias, viria a transformar-se num enorme símbolo de superação das desigualdades sociais.

Em 2016, revelou-se como a grande surpresa das eleições, sendo a 5ª vereadora eleita com maior número de votos na câmara do Rio de Janeiro.

A sua história pessoal de superação, e a sua genuína preocupação com os direitos humanos e as minorias viriam a recolher o apoio e carinho das mesmas, que encontravam nesta vereadora uma forma de expressão e um instrumento para a diminuição das desigualdades sociais (como se pode constatar nos diferentes projetos de lei que decidiu defender – direitos de mulheres no trabalho, direitos associados à maternidade ou às famílias cuja atividade profissional decorre no período da noite).

Shyrlei Rosendo, coordenadora do setor de mobilização do eixo de segurança pública da ONG Redes da Maré e pedagoga, caracterizava Marielle como:

(citação)uma pessoa muito forte. Uma figura que não levava recado para casa. Isso era muito marcante. Sempre muito firme nos seus objetivos, sabendo o que queria, mas também sabendo escutar as pessoas e dialogar.”

Ubuntu – Eu sou porque nós somos

Acérrima defensora das suas raízes e com um enorme sentido de comunidade, Marielle integrava, tal como Mandela, uma filosofia africana (zulu) na sua forma de estar e atuar.

Segundo Mandela, a questão a que deveríamos dar resposta seria: “o meu progresso pessoal está ao serviço do progresso da minha comunidade?”, na medida em que a nossa existência dever-se-ia inspirar em princípios de solidariedade, cooperação, respeito e  generosidade.

Marielle viria a representar tudo isto, não só através do papel político que desempenhava, mas também pela forma como se envolvia diretamente e diariamente com as comunidades (na noite do assassinato, estaria a retornar de uma reunião com jovens negras da favela).

Que Legado?

Recentemente, recordo ter lido (infelizmente não consigo precisar a fonte) que “uma chefia detém uma posição, um líder detém as pessoas” e esta é, de uma forma muito simplista, uma excelente imagem do que implica ser líder.

Marielle tinha as pessoas consigo em vida e, paradoxalmente, tem muitas mais após a sua morte, transformando-se num símbolo em toda a comunidade internacional.

Na noite de 5 de março de 2019, os Brasileiros levantaram cartazes e elevaram as vozes dizendo “Marielle Presente” – e, em boa verdade, ela deveria estar “presente” em todas as mulheres e em todos os homens também.

O tema das desigualdades sociais – de género, raça, orientação sexual, classe económica… entre tantas outras que se “inventam”, para nos “entretermos”, em conflitos perfeitamente vazios de conteúdo e significado, – não é um tema das minorias, de homens ou mulheres, mas antes um tema de todos nós.

Marielle deixa um legado de valorização e orgulho pelas nossas raízes, de construção e superação através da adversidade, de força, confiança e determinação. Deixa, acima de tudo, um caminho visível, possível… um caminho de escolha, participação, solidariedade e comunidade…

Caminho esse que pode ser percorrido, desde já, através de ações individuais que, cada um de nós, consiga integrar no seu quotidiano – por vezes, ações muito simples – que, quando são atuadas com determinação e consistência – produzem enormes alterações.

Deixa também, em todos os que conhecem a sua história, uma pergunta inquietante:

Afinal, que Legado cada um de nós quer deixar?

Nota: Fotografia por Márcia Foletto.

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