Manual de sobrevivência para o Natal

Ana Caetano // Dezembro 23, 2021
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Natal
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O Natal deste ano será porventura marcado pelo facto de ser aquele em que algumas famílias se reúnem pela primeira vez em um ou dois anos. Apesar de muita saudade e amor, posso afirmar que Família e Natal é uma mistura potencialmente explosiva. Algumas pessoas marcam sessões próximo do Natal para ensaiarem estratégias de como sobreviver à quadra festiva, e outras no pós-Natal para processarem uma espécie de “roupa velha” emocional.

O filme “Rebecca”, baseado num romance de 1938 escrito por Daphne Du Maurier, conta a história de uma mulher que se apaixona por um viúvo atraente e que decide viver com ele na mansão que antes tinha sido habitada por Rebeca, a falecida esposa. Apesar de morta, ela ocupa todos os espaços da casa, a adoração dos empregados e o coração do marido. Espicaçada pela curiosidade, a atual mulher tenta perceber quem foi a pessoa que a impede de viver a sua vida no presente. A adaptação ao cinema valeu um óscar a Hitchcock em 1940 e pode ser (re)vista aqui.

Pode considerar-se exagerada a afirmação de que a história é comum e atual dado tratar-se de um thriller psicológico dos anos 30 do séc. XX. Porém, assisto a versões constantes desta trama psicológica no consultório. Mas, qual a ligação entre “Rebecca” e o Natal? Já lá irei…

Viver sem expectativas surge como uma das melhores formas de aceitar a vida como ela é, minorando o sofrimento psicológico desnecessário. Fácil de dizer, difícil de praticar. 

A maioria de nós tem expectativas sobre o que esperar de uma relação, de um emprego, de um filho ou simplesmente de uma viagem. Então comprometemo-nos com o “baixar das expectativas” perante as circunstâncias, doseando as ilusões e combatendo as idealizações. Tal está na nossa esfera de ação e faz parte de viver na realidade.

Cumprir expectativas é algo completamente diferente.

Tanto na esfera pessoal, como profissional temos de as cumprir para manter ganhos e valorização. Esse esforço pode ajudar-nos a superar dificuldades e objetivos, traduzindo-se em autoconfiança e prazer em se ser quem se é.

E tanto no momento de baixar expectativas como no de as cumprir há um patamar ótimo de funcionamento que pode ser ilustrado por um botão de volume: às vezes há que ser posto no máximo, outras no mínimo, consoante as circunstâncias.

“Rebecca” e as expectativas

É comum ouvir-se no consultório “aqui posso ser quem sou e é um alívio!”, ou “como é que é possível que seja preciso vir ao psicólogo para ser quem sou?”. Costumo observar que há muitas pressões provenientes da família e da sociedade para cumprirmos expectativas. Contudo, quando essas expectativas anulam a expressão do indivíduo é complicado.

Estes desabafos tristes, cansados ou irritados têm origem em dois tipos de histórias:

– Alguém que tenta cumprir um ideal de marido/esposa, namorada/o, pai/mãe, amiga/o ou filho/a por estes projetado que simplesmente não consegue atingir. Essas idealizações existem apenas na mente de uma pessoa que se abstrai do fundamental: olhar e ver quem está à sua frente e com a qual se relaciona. Lembro-me de um homem educado, empático e reflexivo que desde cedo desejava ser professor e trabalhar com miúdos. No entanto era dotado para o desporto e o pai apenas alimentou esta faceta. Nunca procurou falar com o filho e conhecê-lo ao invés de assumir que ele, como todos, queria ser futebolista. Este desencontro levou a que se sentisse sistematicamente no sítio errado, acumulando bastante sofrimento interior, principalmente quando via a cara de desilusão do pai quando ele sabotava o seu próprio sucesso;

– Outras vezes as pessoas sentem-se vistas através de lentes que apenas realçam os defeitos, fragilidades e falhas. Estas pessoas são criticadas apenas por duas razões: por tudo e por nada, criando-se uma sensação de derrota antes de qualquer esforço. Lembro a história de uma jovem brilhante que teve uma nota excecional na tese de mestrado, numa área profissional exigente em que não teve nenhum dos pais na assistência da discussão do trabalho. Nenhum deles achou importante estar presente porque também não esperavam nada de especial…

A sensação de se ser visto como se é, nas vulnerabilidades, forças, jeitos, manias e gostos vale muito na afirmação da nossa identidade e dignidade (aqui no sentido de valor particular que tem todo o ser humano como humano, isto é, como ser racional e livre, como pessoa)

A invisibilidade que muitos vivem nas suas vidas traz sofrimento, tristeza e uma sensação de vazio ou solidão. 

Este tipo de sensações leva a mal-estar continuado, a inquietação, a olhar-se com desprezo, enfraquecendo a autoconfiança e potenciando o desgaste da saúde mental.

Este Natal deixe o manto de invisibilidade de lado. 

Um dos momentos mais elogiados no Natal é o encontro da família alargada numa refeição. As rabanadas podem ser maravilhosas, mas, por vezes, a tensão com que se escolhe uma delas da travessa pode ser imensa. Assim, deixo algumas sugestões para viver o Natal de modo a eliminar a sensação de invisibilidade.

11 Dicas para sobreviver às rabanadas, ao bacalhau e não só neste Natal: 

  1. Aceite que os seus filhos cresceram e que, no presente, podem ter gostos diferentes. Por exemplo, podem ter adotado uma dieta vegetariana. Em vez de criticar as “esquisitices”, olhe para essa opção com curiosidade e experimente fazer perguntas sobre isso;
  2. Aceite aquele elemento da família como calado ou brincalhão. Criticar e gozar com o sobrinho ou a neta usando nomes como “bicho-do-mato” ou “palhaço” não ajuda a um ambiente harmonioso. Caso perceba que os “miúdos” foram educados e respeitadores, defenda-os com justiça e elegância;
  3. Lembre-se do que os seus familiares NÃO gostam de comer. Um dos tópicos mais ouvidos em consultório é «eu NUNCA gostei de bacalhau, mas todos os anos o bacalhau é posto à minha frente e tenho de dizer que não gosto de bacalhau para logo a seguir ouvir “ah, nunca tinha reparado”. Sinto-me tão triste… Conhece-me desde sempre e passados 36 anos ainda tenho de ouvir isto»;
  4. Aceite que há elementos da família que não perdem uma oportunidade de amesquinhar e ensaie 2 ou 3 respostas para esses momentos. Assim vai diminuir a possibilidade de se sentir desconfortável e de estragar o seu Natal. A minha resposta preferida a esse tipo de comentários é: “Pois…” , seguido de uma longa pausa que finda em silêncio;
  5. Evite contar pela 17.ª vez uma história que embaraça um dos seus familiares quando ele já demonstrou desconforto ao ouvi-la. Não terá uma resposta diferente que não seja a do familiar voltar a sentir-se desconfortável uma vez mais;
  6. Olhe para os seus familiares mais velhos como eles são no presente e não como eram no passado. As pessoas crescem e melhoram na sua forma de estar e não precisam de ser castigadas todos os anos por algo que aconteceu noutras circunstâncias, sobretudo quando se esforçam no presente por serem diferentes. É a consoada em família e não uma sessão de terapia de grupo;
  7. Evite dizer mal dos ausentes: alguém pode ter escolhido ficar em casa, por exemplo, para se proteger do COVID-19 ou simplesmente porque a viagem é longa e cansativa. As pessoas têm direito a cuidar do seu bem-estar. Lembre-se que “nas costas dos outros vemos as nossas” e a maledicência cria um ambiente de desconfiança;
  8. Se há assuntos fraturantes – os clássicos futebol, religião e política – pense nas consequências antes de se pronunciar sobre eles;
  9. Um copo de vinho ajuda a quebrar gelo, tornando o ambiente fluído… Mas se “desata” muito a língua e traz conversas e momentos tensos, pense bem antes de encher o copo: o seu ou o de um familiar mais intempestivo;
  10. Esteja atento ao anfitrião da consoada e veja se precisa de ajuda – a preparar a refeição, levantar os pratos na mesa, lavar a louça ou simplesmente levar o papel de embrulho das prendas para o lixo. Redobre a atenção se esse anfitrião tiver crianças pequenas ou for mais velho, uma vez que têm contextos para já estarem mais cansados;
  11. Oiça o que a outra pessoa está a dizer e evite a atitude de estar apenas à espera de uma pausa na conversa para dizer o que já tem na sua cabeça: isso é um monólogo partilhado à vez e não um diálogo. Às vezes, se ouvirmos realmente o outro, aprendemos coisas, sentimo-nos acolhidos, divertimo-nos e até somos vistos na nossa essência.

Campanha de Natal

Regressando à “Rebecca”, há um aspeto interessante no filme: o nome da segunda mulher do viúvo nunca é referido. À esposa atual é negado o direito ao nome – algo que define bastante a identidade – mas o fantasma da sua antecessora continua a desfrutar desse direito como se estivesse viva, visível…

Neste Natal, e ao longo do ano, abrace a campanha: “Veja e seja visto”.

Bom Natal e melhor ano 2022.

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