Famílias tóxicas

Mauro Paulino // Julho 15, 2022
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Uma questão recorrente do trabalho relativo à recuperação psicológica de pessoas passa por se abordar o papel desempenhado pela sua família de origem nos abusos ou sofrimento que experienciam ao longo da vida. No fundo, é como se ficasse uma ferida aberta que aumenta a vulnerabilidade.

O que podemos entender como família tóxica?

Podemos chamar de família tóxica ou familiares tóxicos qualquer família ou elemento disfuncional caracterizado pelo abuso e pelo trauma, gerador de sofrimento e que promovem guiões de vida mais vulneráveis, permitindo que a vítima deste registo tóxico se converta mais facilmente em vítima de outros abusos, uma vez atingida a idade adulta. Pela evolução e dinâmica dos comportamentos tóxicos, quase nunca as vítimas reconhecem a toxicidade encoberta que vivenciam.

Quando o perpetrador de um trauma é uma figura parental de apego primária, o problema para a criança é duplo. Por um lado, tem de sobreviver à experiência traumática. Por outro, tem de lidar com uma figura parental que é abusiva ou negligente.

Experiências tóxicas

Podemos referir, a título de exemplo, a intrusão reiterada nos limites da criança, não permitindo aprender que o respeito pelos próprios limites é algo que se deve exigir aos outros; o abuso e a exploração habituais, tornando-os triviais; o cuidado e a proteção da criança não existiam ou não eram prioritários; a insegurança e a imprevisibilidade da violência, levando a que a criança perca a capacidade de estar vigilante; a inconsistência e a inconstância que conduz à redução da capacidade de discernir; os segredos e a distorção da comunicação, com prejuízo na capacidade da criança contactar com as suas próprias emoções; o sentimento de inadequação ou indignidade que fizeram com que a criança não se sinta digna de amor; a sedução vivida em contexto familiar, podendo, no futuro, tornar-se mais vulnerável a quem, de forma, manipuladora lhe faça promessas.

Desta forma, as famílias podem manifestar um registo mais instável emocionalmente, mais violenta e abusiva ou mais manipuladora.

É raro que estas experiências de abuso nas famílias se dê de forma aberta ou manifesta, acontecendo, não raras vezes, sob a máscara de uma figura que, apesar de procurar destruir e aniquilar, realiza juras de amor, cuidado ou proteção, que soam a verdade junto de terceiros (outros familiares e amigos).

Sequelas psicológicas de uma família ou familiar tóxico

As possibilidades são várias. Algumas pessoas chegam à sessão e afirmam não se lembrar de praticamente nada da sua infância, o que pode ser um sinal de experiências adversas severas, que, às vezes, é necessário recuperar através do EMDR (Eye Movement Desensitization and Reprocessing), um modelo terapêutico de dessensibilização e reprocessamento através do movimento ocular. Outros sinais possíveis envolvem sentir como se estivesse fora do corpo, ter frequentes esquecimentos relativos a lapsos de tempo em que estiveram “ausentes”, estar com a cabeça “noutro sítio”, ter pensamentos permanentes na vida diária, que retiram a pessoa do aqui e agora, ou viver numa fantasia romântica, imaginando aventuras, amores idealizados.

A dor de viver ou ter vivido num ambiente tóxico pode envolver ideias negativas de si própria, autossabotagem (da felicidade ou dos êxitos), condutas autodestrutivas e autolesivas, adições, bem como a submissão, a negação, a dependência afetiva ou a necessidade constante de agradar, independentemente do sofrimento causado na própria.

É possível superar?

Reconhecer que a família ou um elemento familiar não esteve afetivamente disponível é sempre uma tarefa desafiante. Percorrer o caminho que vai da zanga, do ódio até ao aceitar da dor e da tristeza sentidas durante a infância permite que a vida possa seguir, finalmente, em frente. Este é um caminho terapêutico que muito beneficia de intervenção psicológica especializada.

As soluções pouco eficazes que o adulto ensaia hoje para tentar tapar o trauma infantil de ontem tendem a não resultar. Não escolheu uma família tóxica, mas pode optar por deixar de continuar a ser vítima desse registo penoso. É necessário procurar novas soluções e mostra-me a prática clínica que é maravilhoso constatar como muitas pessoas se libertam da dor, da tristeza, da ira, da culpa, da vergonha.

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