Estou a morrer! Mas, sabes que mais? Também tu...

Cristina Felizardo // Outubro 12, 2019
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“Olá, eu sou a Ana, tenho 32 anos e estou a morrer! O quê?! Choca-te?! Nem sei porque estás com essa cara, afinal, todos nós estamos a morrer, certo? A única diferença é que eu sei que morro daqui a uns seis meses. Vá, talvez uns oito se me portar bem. Espera! Desculpa! Deixa-me ajudar-te a empurrar o queixo para cima. É que ficaste de boca aberta, reparaste nisso? Eu sei. Também eu fiquei. Foi naquele dia no consultório do médico. Tens um minuto? Então, deixa-me contar-te como foi:

‘Os exames são claros. O cancro está muito avançado. (…) As metástases (…) Estimamos que tenha cerca de seis meses de vida, mas pode (…) Temos tratamentos para a dor (…) Lamento muito!’ – depois de ouvir a palavra cancro, foi como se tivesse acabado de entrar num filme que estava em modo de câmara lenta. 

Depois de ouvir a palavra cancro, foi como se tivesse acabado de entrar num filme que estava em modo de câmara lenta…

O médico continuava a falar, as palavras saiam da sua boca, mas eram tão lentas que eu não apanhava nem uma. Assim ficámos durante algum tempo, ele a emitir sons guturais acompanhados de gestos e acenos de cabeça e eu de queixo caído a tentar tirar umas pelas outras. Só percebi que a conversa tinha terminado quando ouvi o irreversível ‘Lamento muito’! 

O irreversível ‘Lamento muito’!…

Ele lamenta muito?! Eu é que tenho 32 anos, no auge da minha vida, feliz ao lado do homem dos meus sonhos, a construir carreira a fazer o que amo e ele é que lamenta?! Não! Com lamentos, ou sem lamentos, é simples! Isto não me pode estar a acontecer. Simplesmente não é possível, não com todos estes planos. Saí do consultório determinada a provar que este médico estava errado, que os exames estavam errados, que o laboratório estava errado… basicamente de que este dia não passava de um grande erro! Fiz telefonemas, escrevi emails, recorri a amigos, pedi segundas opiniões (e depois terceiras e talvez quartas)… mas, inevitavelmente todas as conversas terminaram com o terrível ‘Lamento muito’!

Porquê eu?

Desatei num pranto. Até aí ainda não me tinha permitido chorar. Tinha medo de que no momento em que o fizesse não conseguisse mais parar. A autocomiseração surgiu logo a seguir. O momento do ‘Porquê eu?’ Mas, porquê a mim? Só tenho 32 anos, levo uma vida saudável, faço desporto desde que me lembro, não fumo, não bebo, tenho cuidado com a minha alimentação… não percebo! Tantos que nada fazem para cuidar da sua saúde! Tantos que vivem para comer e beber! Tantos que desperdiçam as suas vidas… todos eles com uma saúde de ferro! E eu? Mas, que fiz eu? Não é justo. E não era. Mas, é assim, a vida. Não se trata de justiça. Nunca se tratou de causa-efeito. Sempre foi uma questão de aleatoriedade. Mas, eu não vi isso. Só percebi mais tarde. E, por isso, nesse dia, eu chorei. Chorei sozinha, gritei com a minha mãe, berrei com o meu namorado, insultei o médico e amaldiçoei Deus… que grande plano era o Dele!

Eu estava em contagem decrescente!

Depois, veio o dia a seguir. O dia que era mais um a descontar aos seis meses. De repente bateu-me. Eu estava em contagem decrescente! E cabia-me a mim escolher: ficar a ter pena de mim própria, ou ir à luta. Nunca fui muito de lamúrias por isso só me restava a opção b. Luta seria. Em menos de um dia tracei o meu próprio plano de recuperação: mais desporto, a dieta roxa que li no ‘Journal of Clinical Oncology’, seguir as recomendações do meu terapeuta de medicina tradicional chinesa, enfrentar os ciclos de quimioterapia e inscrever-me nas sessões de meditação guiada onde anda a minha amiga Rute. Pelos vistos, ela conheceu uma senhora num dos grupos de meditação, doente oncológica, que entrou em remissão total do cancro, depois de ter começado com as sessões. Os médicos não conseguiam explicar, mas essa senhora estava convencida de que tinha sido a parte espiritual a regenerar o corpo. Não te sei dizer se acreditava totalmente nessa história, sempre fui um bocado céptica. Mas, quando és tu que estás nesses sapatos, sabe bem acreditar. Afinal, quem sabe se eu não seria aquele caso de um num milhão? Não é o que eles dizem? Li algures que os oncologistas dizem que a cura é 50% tratamento e 50% atitude. E eu estava cheia de atitude. Não tinha mais tempo a perder. Literalmente. Consegui manter esse ânimo nas semanas seguintes. Contagiava todos à minha volta, de tal maneira que às vezes até nos esquecíamos da palavra C. Só quando me olhava ao espelho e via a minha careca a luzir contra a luz é que tinha o meu wake up call. De volta à realidade lá ia eu: desporto, terapias, tratamento e meditação. 

Lamento muito!

Às 12 semanas recebi os resultados dos novos exames. Estava confiante de que ia ter boas notícias. Lamento muito! Uau! Voltei aqui outra vez. Ao filme de câmera lenta. Só que desta vez a cena não demorou tanto tempo. Desta vez, já não gritei, nem berrei, nem insultei, nem amaldiçoei. Chorei. Simplesmente chorei. Ele, o médico, chorou comigo. Abracei-o e disse-lhe: Também eu!

Nesse dia à tarde fui sozinha para a minha esplanada favorita. Queria aquele momento só para mim. O meu galão morno e o croissant prensado com manteiga. Sim! Decidi que iria parar com a dieta roxa. Queria saborear todos os momentos, guardá-los em mim, na caixinha das doces memórias. Tinha-os tomado como garantidos. Que iam acontecer sempre. Que eu ia vivê-los sempre! Que eu ia viver para sempre. Mas, não. Eu não. Eu estou a morrer. Era um pensamento que me tentava sobressaltar dia e noite e eu afugentei-o com quantas forças tinha, dia e noite. Mas, já não tinha mais forças. Estava cansada de fugir. Estava-me a saber tão bem, estar ali, a apanhar aquele sol de fim de setembro, de galão na mão. Por isso, disse em voz alta: ‘Estou a morrer’. 

Estou a morrer.

Foi a primeira vez que o disse, a primeira vez que se tornou real. Já não estava dentro do filme. Por incrível que pareça, foi a primeira vez desde aquele ‘Lamento muito’ que senti alguma paz. Fui para casa e pedi à minha família a amigos mais chegados para se juntarem lá todos depois de jantar. E disse-lhes o meu ‘Estou a morrer’. Sabia que ia haver tristeza. Também a sentia. Mas, pedi-lhes para que comigo pudessem ter também alegria, para eu rir quando me apetecesse rir, raiva, para me ajudarem a espancar almofadas nos dias mais frustrantes e medo, para me agarrarem na mão quando o caminho ficasse muito escuro. Expliquei-lhes que queria fazer o melhor com a vida que me restava. E esse melhor era aquele momento, mais momentos, criar doces memórias até ao dia onde também eu seria uma memória. 

Chegou o dia da minha morte. E quando a vida me passou em flashback diante dos olhos (piada cósmica: foi mais um filme), o sentimento que me inundava era gratidão.”

Faz melhor já!

Sim! Acho que se a Ana estivesse aqui para te contar a história dela seria este o fim que ela escolheria. Afinal, foi assim que ela viveu a sua vida: uma vida de afetos. Por que razão haveria de ser diferente na sua morte? Eu sei. Estive lá na guerra de almofadas. Gargalhamos no serão a contar histórias da minha tia Alice, que é uma personagem. Chorei ao seu lado no dia em que ela vinha inconsolável do médico. E, finalmente, dei-lhe a mão quando o caminho escureceu. Eu sou a Rute, tenho 33 anos e também estou a morrer. Mas, não mais do que tu. A única diferença é que eu aprendi a viver cada dia como se fosse o último. E esse foi o legado que a Ana me deixou: faz melhor já! A vida é demasiado preciosa para não ser bem vivida.

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