Espelho meu, espelho meu, que preciso de dizer eu?

Filipa Maló Franco // Janeiro 22, 2020
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Nós somos de “modas” e existem temas aos quais damos primazia em diferentes momentos, gerações e, actualmente, o tema em voga é o bem-estar, e todas as técnicas, relatos e opiniões para termos uma vida mais tranquila, cheia de amor-próprio e felicidade – e ainda bem. Contudo, penso também que a saúde mental acaba por ser abordada de forma leviana, o positivismo é transmitido de forma excessiva – e, consequentemente, desadaptativa – e as técnicas transmitidas como uma fórmula mágica que se aplicam a tudo e a todos, o que não é verdade (felizmente!). Todos temos direito a uma opinião de facto, e considero muito positivo e enriquecedor partilharmos o que resultou connosco, expressarmos aquilo que sentimos e que pensamos, mas deve existir um limite entre o que resultou connosco e o que se pode aplicar em massa, ou o que é efectivamente benéfico. Por vezes consideramos que pequenas técnicas podem não fazer bem, mas também mal não fazem. Porém, infelizmente não é assim tão linear.

É necessário existir rigor e consciência de que a saúde mental é delicada.

É necessário existir rigor, consciência de que a saúde mental é delicada e que nós temos a nossa individualidade que deve ser respeitada. Não existem fórmulas mágicas, técnicas milagrosas, afirmações positivas para atrair amor, dinheiro, auto-estima, entre muitas outras promessas que acompanham sempre a tão famosa mudança de mindset, como o segredo para a cura de todas as perturbações mentais e problemas diversos. Não é assim tão simples, porque se o fosse, a saúde mental não estaria num patamar tão desafiante como o actual. Segundo a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde mental, em Portugal, “entre as perturbações psiquiátricas, as perturbações de ansiedade são as que apresentam uma prevalência mais elevada (16,5%), seguidas pelas perturbações do humor, com uma prevalência de 7,9%.”,  e citando o Público, “de acordo com o relatório Health at a Glance 2018, divulgado esta quinta-feira pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), 18,4% da população portuguesa sofre de doença mental, onde se inclui ansiedade, depressão ou problemas com o consumo de álcool e drogas”. É preciso uma maior consciência sobre estes números, desmistificar a ideia de que Psicologia e Psiquiatria “é só para malucos” (que não é) e que por vezes precisamos de pedir ajuda, por vezes não está tudo bem, nem tem de estar. Devemos também esquecer a ideia de que só devemos sentir emoções positivas e que a felicidade é algo constante e linear. Nós somos humanos com todas as nossas imperfeições e subjectividade. E está tudo certo. 

Afirmações positivas para todos? Talvez não…

Depois desta longa introdução e sobre as afirmações positivas, quando me desafiaram para escrever sobre este tema, aquilo que respondi foi que considerava que a minha opinião não era a que o leitor iria querer ler, ou que fosse ao encontro com o objetivo inicial deste tema, sendo que não poderia escrever sobre algo que me transmite algum “comicho”, a não ser que fosse absolutamente sincera. Isto porque, é mais confortável lermos e ouvirmos que vai tudo correr bem, que basta dizermos ao espelho “eu gosto de mim” e “eu sou perfeita”, vezes suficientes para que a nossa auto-estima se eleve miraculosamente e que nos tornemos uma pessoa super confiante. E, de facto, para algumas pessoas, as frases positivas são como um conforto, porque não chocam com a nossa realidade, mas para outras (as que mais precisam delas por sinal), podem ter o efeito contrário. A ciência refere, inclusivamente, que para as pessoas com boa auto-estima e que já se sentem bem consigo mesmas, as afirmações positivas parecem fornecer um impulso positivo embora de baixo efeito (Wood, Perunovic, & Lee, 2009). Mas, para as pessoas com uma auto-estima fragilizada, as afirmações positivas parecem ser não apenas ineficazes, mas realmente prejudiciais em alguns casos (Wood, Perunovic, & Lee, 2009). Prejudiciais sim, leram bem. 

Então, que cuidados devemos ter com as afirmações positivas?

. Adaptar

Antes de mais, acredito que devemos ter presente que somos seres subjetivos e que o que funciona com a pessoa X, não funciona com a pessoa Y. Posso ter um/a amigo/a que lê afirmações positivas ao espelho todas as manhãs e que adora, e comigo ser algo que me deixa desconfortável e está tudo certo. Não é por isso que serei menos que ninguém, nem que não vou conseguir superar isto ou aquilo. 

. Utopia vs Realidade

A mente é genial, tal como as palavras podem ter um impacto considerável nos nossos pensamentos e acções, a mente também tem o discernimento de perceber se a afirmação é exagerada ou adequada. Quando vamos contra a nossa realidade, entramos em conflito connosco mesmos, o que pode causar sofrimento. Imaginemos o seguinte cenário: se uma pessoa com algumas fragilidades ao nível da autoestima e amor-próprio, ler continuamente a frase “eu sou perfeita”, pode ficar ainda mais frustrada por ser uma frase muito desfasada da realidade – até porque a perfeição não existe -, como também, por pensar que “resulta” com toda a gente menos com ela. Ao invés de dizermos por exemplo “eu gosto de mim” podemos dizer “eu quero melhorar a relação comigo mesma” passando de uma afirmação irreal para uma real tendo um efeito diferente.

. Afirma sucessos, conquistas e emoções

Não serve de nada afirmarmos sobre situações que não correspondem à realidade, nem vamos atrair a felicidade, dinheiro, relações, sucesso através de uma sequência de palavras que dizemos ao espelho todas as manhãs. Contudo, nem todas as afirmações positivas são desprovidas de sentido na minha opinião. Considero que o auto-reforço positivo é extremamente importante, tendo um papel considerável na nossa motivação intrínseca e relação connosco mesmos, então porque não afirmar todas as nossas pequenas conquistas que tão rapidamente tendemos a esquecer? Como por exemplo: “hoje completei os meus objetivos no trabalho”, “hoje levantei-me para ir treinar e fiquei muito feliz comigo”, “hoje acreditei em mim e consegui”, “hoje sinto-me mais em baixo e está tudo certo…”.

Em modo conclusão…

Actualmente parece que estamos perante uma geração menos crítica, que procura respostas imediatas, fórmulas mágicas (porque é mais aliciante, eu percebo), e caminhos rápidos. Considero que essa é uma das razões para a presente situação (desconcertante) na área do bem-estar e saúde mental. Pensamos pouco, muito pouco, e não o queremos fazer na verdade. Enfrentar as dores, as emoções e todos os seus processos subjacentes dói, então preferimos camuflar com uma falsa imagem. Preferimos ferramentas com falsas promessas e ficamos dependentes delas. Assumimos como verdade aquilo que vemos e não vamos mais além. Rapidamente interiorizamos que somos nós que não nos enquadramos, que estamos errados e não colocamos em cima da mesa que somos humanos, com as nossas individualidades e subjetividade, e procuramos uma felicidade inatingível e uma situação irreal, que nos vai conduzir a uma frustração interminável! Voltando às afirmações positivas… se te fazem sentir melhor utiliza, mas adapta. Se não te fizerem sentido, está tudo certo. Continua o teu percurso imperfeito (e ainda bem que o é!).

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