Neste momento, uma diversidade de fenómenos ocorrem no seu cérebro. Um conjunto de estímulos visuais são captados na lucidez da retina, viajam no nervo ótico, trocam voltas num quiasma, são baralhados na radiação ótica até chegarem a morada certa no córtex occipital, uma zona na vastidão da superfície do seu cérebro, onde as luzes passam a ser mais do que isso, ganhando forma e início de significado. Findo isto, após transferência para áreas dedicadas à linguagem, os contornos tornam-se letras, as letras tornam-se palavras, as palavras tornam-se texto e o texto em significado.
Neste momento, os destinos seguintes poderão ser diversos e o cérebro assume a função de um imprevisível crupiê que distribui cartas – informações – para destinos tão singulares quanto todas as pessoas que possam ler estas palavras. Algumas das informações encontrarão significado na nossa memória biográfica, no conteúdo semântico que armazenamos há muito, ou mesmo num conjunto nuclear de elementos que são objeto do nosso afeto ou crença. Neste labirinto, outros trajetos poderão ser mais delimitados.
A complexidade da nossa geografia cerebral
Enquanto continuamos a leitura deste texto, os nossos olhos alternam entre movimentos lentos e saltitantes e os dedos da nossa mão, ora deslizando no ecrã, ora comandando o rato do computador, articulam-se harmoniosamente sob a tutela de áreas motoras e suplementares. Tudo isto acontece enquanto preservamos a perceção das nossas circunstâncias – do autocarro que se aproxima, ou da próxima paragem do metro.
Outros fenómenos, à partida subvalorizados, também tomam lugar neste segundo – sabemos a exata inclinação da nossa cabeça, cada gesto que o nosso corpo desenha, ou mesmo quão confortável é, por exemplo, a cadeira onde nos sentamos. O discurso poderia ser infinito, mas será inegável a complexidade da nossa geografia cerebral e de todos os trajetos que a definem.
E de repente… acontece um Acidente Vascular Cerebral
Ter um Acidente Vascular Cerebral (AVC) isquémico será privar o aporte vital de sangue a cada uma destas moradas funcionais. Nesse momento, funções como a linguagem, a capacidade de mover parte do nosso corpo, ou mesmo a nossa consciência, são subitamente furtadas num gesto alheio a violência ou aviso. Outras coisas poderão desaparecer nesta tempestade: uma parte da nossa visão, da sensibilidade do nosso corpo, do nosso equilíbrio ou até da noção de nós próprios. O espólio a furtar é vasto e o custo incalculável.
Ditou o avanço da ciência e da técnica que deixássemos de ter um olhar contemplativo sobre o AVC. Hoje dispomos de ferramentas eficazes para o tratar, quer seja por via de uma medicação com o potencial de dissolver os coágulos, ou por via de outros procedimentos que, com recurso a pequenos cateteres, permitem chegar ao interior do vaso faltoso e desobstruir o seu trajeto. Não raras as vezes temos que nos socorrer de ambos, mas sempre sobre o escrutínio do tempo. O cérebro é particularmente sensível ao efeito do último, é-lhe pouco resistente, de facto, pois privar os neurónios do seu aporte vital significa condená-los a um destino fatal se não conseguirmos reverter o quadro, no limite, nas primeiras 24 horas.
O reconhecimento atempado dos sintomas é extremamente importante.
O reconhecimento precoce de sintomas como: alteração da fala, da simetria do rosto, falta de força, ou outros como alteração súbita da articulação do discurso ou do equilíbrio, é fundamental para um tratamento atempado. Nos melhores centros estamos a inverter a história natural do AVC em aproximadamente um terço dos casos. Os restantes, na sua maioria, chegam tarde demais.
Quais são as causas do AVC?
O AVC não é um diagnóstico definitivo, mesmo se não submetido a tratamento de fase aguda, importa perceber qual a sua principal causa. Na maioria das vezes tratar-se-á de uma alteração do ritmo do coração, ou do estreitamento dos grandes ou dos pequenos vasos cerebrais. Existirão outras causas mais raras e de diagnóstico, naturalmente, mais exigente. Os inimigos remotos são conhecidos de todos: o sedentarismo, a obesidade, os distúrbios do colesterol ou do metabolismo do açúcar. Estes podem ser objeto de prevenção secundária, depois de sucedido o AVC, ou, preferencialmente, da sua forma primária – antes das consequências se manifestarem. A última tem sido objeto de uma dedicação extraordinária de todos os profissionais de cuidados de saúde primários, que em muito modificaram o panorama epidemiológico do AVC em Portugal.
Dia Nacional do Doente com Acidente Vascular Cerebral
Contudo, o AVC ainda é a principal causa de morte e incapacidade em Portugal, por isso importam dias como o de hoje, dias em que reconhecemos a dimensão do problema, em que delineamos objetivos de progresso, em que relembramos de pistas fundamentais para reconhecer a assinatura da doença nos nossos pais, avós e amigos, em que reforçamos que não “devem esperar para ver se passa”, que devem ligar de imediato ao 112 – tudo estará organizado para os orientar. Nós cá estaremos para os receber, idealmente, cada vez menos, cada vez menos.