Nem todas as crianças têm o direito à inocência, nem todas as crianças são tratadas como crianças. Às vezes, as crianças são tratadas como adultos, são vistas como os melhores amigos dos pais, os confidentes, os cuidadores. Quando isto acontece, as crianças habituam-se a assumir responsabilidades que não deveriam ser suas e transformam-se em adultos muito condicionados nas relações íntimas.
O que é uma criança parentificada?
A parentificação acontece quando uma criança se sente obrigada a assumir os cuidados dos irmãos ou a intervir nas discussões entre o pai e a mãe. De uma maneira geral, isto acontece porque os pais estão demasiado absorvidos pelos seus próprios problemas emocionais e não conseguem oferecer uma estrutura sólida aos filhos. Mas também pode acontecer de forma mais ou menos deliberada, quando os adultos colocam sobre os ombros da criança determinadas responsabilidades e elogiam o facto de se tratar de uma criança “muito madura” ou “muito responsável”.
Às vezes, a criança parentificada passa toda a sua infância empenhada em garantir que as necessidades básicas, como a preparação da comida, a arrumação da casa ou a realização das matrículas escolares sejam concretizadas a horas. Noutros casos, a parentificação está sobretudo associada à hipervigilância em relação às discussões entre os progenitores. Isto é particularmente frequente quando um deles tem problemas com o álcool, é violento e/ou está deprimido. De alguma maneira, a criança acaba por assumir que é responsável por evitar qualquer tragédia.
Claro que, nestas circunstâncias, o cérebro está tão ocupado com responsabilidades que deveriam pertencer aos adultos que não há espaço para relaxar e brincar. Isso não significa que estas crianças não possam ser vistas a brincar. Vistas de fora, elas podem ser vistas como crianças “normais”. Tipicamente são crianças que não dão trabalho, que procuram fazer aquilo que os adultos precisam que elas façam.
Quando crescem até são capazes de se referir à infância como feliz. Não estão a mentir. As brincadeiras com os amigos podem ser as memórias mais vívidas que têm da infância. Este é um mecanismo de defesa que as ajuda a sobreviver às adversidades. O pior é na idade adulta.
Tipos de parentificação
É possível identificar duas formas de parentificação:
- Parentificação emocional – acontece quando a criança assume o papel de confidente ou de cuidador dos pais ou dos irmãos (em substituição dos pais). Nalguns casos, pelo menos um dos adultos partilha com a criança as suas frustrações, as suas inquietações, a sua tristeza. São assuntos emocionalmente densos, para os quais o cérebro da criança não está preparado. Muitas vezes, o adulto está deprimido e/ou chora copiosamente à frente da criança;
- Parentificação instrumental – acontece quando a criança tem de assegurar a realização de tarefas que habitualmente são concretizadas pelos adultos, como cozinhar, limpar a casa, marcar consultas ou tratar das compras.
Nalguns casos, a criança é alvo dos dois tipos de parentificação.
O que acontece quando os filhos têm de tomar conta dos pais?
Tenho encontrado muitos adultos em terapia que estão tão habituados a tomar conta de si próprios que nem se dão conta de quão condicionados estão pela bagagem afetiva. Não foram alvo de violência física, nem necessariamente de insultos ou humilhações e podem ter muita dificuldade em reconhecer que esta também é uma forma de abuso emocional. Como é praticamente invisível e muitas vezes não intencional, acaba por ser ainda mais tóxica do que outras formas de violência emocional.
Não raras vezes, estas crianças transformam-se em adultos com algumas feridas emocionais que os impedem de se sentirem felizes ou de construir relações íntimas e saudáveis.
Inconscientemente, a criança aprende que não é seguro mostrar os seus sentimentos, não é seguro mostrar-se vulnerável, não é seguro mostrar a sua raiva. Essa supressão dos sentimentos pode levar a perturbações ansiosas e depressivas.
Estes adultos podem sentir grandes dificuldades em relaxar, ser espontâneos ou confiar noutras pessoas. A verdade é que não estão habituados a fazê-lo. Pelo contrário, habituaram-se a uma postura hipervigilante, a estar sempre alerta para as necessidades dos outros.
Por outro lado, os sentimentos de culpa são recorrentes. A criança habitua-se desde cedo a cuidar dos familiares e isso transforma-se numa obrigação. Às vezes, os pais continuam a corresponder às necessidades materiais dos filhos, o que torna ainda mais “arriscado” dar voz à própria dor, sob pena de serem vistos como ingratos. De resto, esse é o discurso de muitos adultos que foram crianças parentificadas: têm dificuldade em dizer “não” aos pedidos dos pais, mesmo quando são pedidos injustos e que violam as suas próprias necessidades. Acham que, se o fizessem, estariam a ser injustos em relação a todo o investimento que os pais fizeram (na maioria das vezes apenas financeiro).
A parentificação tem um peso enorme sobre o bem-estar da criança, mas pode ter sido a salvação para a família. Pode ser graças a essa parentificação que a criança conseguiu manter vivo um progenitor depressivo. Pode ser graças à parentificação da criança mais velha que os irmãos mais novos se sentiram amados, seguros, protegidos. A parentificação pode ter impedido que as discussões mais violentas escalassem e descambassem numa fatalidade. Claro que estas “vantagens” podem travar o reconhecimento do problema.
Como superar o trauma da parentificação?
As crianças parentificadas podem transformar-se em adultos muito sensíveis, empáticos, gentis e atentos aos outros. Estão habituados a cuidar, fazem-no desde pequenos. De uma maneira geral, a terapia pode ajudar a reconhecer e dar prioridade às próprias necessidades em vez de valorizar apenas as dos outros. Todas as crianças precisam de amor incondicional, de atenção e de se sentirem ouvidas. Precisam de tempo para brincar, para descontrair, para errar e para explorar o mundo sem o peso das responsabilidades. Estes adultos têm, através do apoio psicoterapêutico, a oportunidade de cuidar da sua criança interior e recuperar o poder sobre a própria vida.
Um dos primeiros passos para que isso aconteça passa por ser capaz de contar a própria história, reconhecendo todas as feridas, sem subterfúgios. Sabemos que, de uma maneira geral, os nossos pais fizeram o melhor que conseguiram com as ferramentas de que dispunham. Nestes casos, é possível que eles também tenham sido crianças parentificadas ou que tenham sido alvo de outras formas de abuso. Mas é importante romper com as dinâmicas relacionais mais tóxicas e isso só é possível se olharmos para a realidade como ela é, chamando os comportamentos abusivos de abusivos.
Reconhecer a realidade, com toda a dor que está associada, é um passo fundamental para ultrapassar o trauma. Este é um processo que pode ser demorado e que envolve a compaixão e a autocompaixão. Os adultos que foram crianças parentificadas estão habituados a ser muito críticos consigo próprios, estão habituados a dizer a si mesmos que não são suficientemente bons. Na prática, estas são pessoas que costumam ser perfecionistas e que estão muito habituadas a fazer todos os esforços para agradar aos outros. São os chamados “people pleasers”.
Nunca é tarde para olharmos para o nosso verdadeiro eu e para reconhecermos que somos – sempre fomos – merecedores de amor incondicional. A terapia serve para que esse trabalho seja feito, para que aprendamos a reconhecer que os nossos pais nem sempre são capazes de nos dar o amor que merecemos e que, enquanto adultos, temos o poder de o fazer, rompendo com os padrões de negatividade e autocrítica.