Gosto de trabalhar, assumo que faço parte desse grupo que gosta de trabalhar. Provavelmente porque exerço a profissão mais bonita do mundo, ou seja, tenho a sorte de fazer o que gosto. Mas também tenho momentos em que sinto que trabalho demais, outras em que não consigo parar e outras ainda em que faço planos para me reformar o quanto antes… Andava às voltas nesta rotunda do que é que o trabalho significava para mim quando comprei o livro “Trabalho: Uma História de Como Utilizamos o Nosso Tempo”, de J.Suzman. Procurava uma compreensão deste binómio “atração pelo que faço/estou cansada demais para prosseguir”. Saliento dois aspetos:
- Os humanos e outros animais (pássaros, por exemplo), quando têm abundância de alimento e recursos “fazem coisas” que não estão diretamente relacionadas com a sobrevivência. Por exemplo, em vestígios ancestrais de presença humana na Terra, já na versão Homo sapiens, encontram-se peças de adorno feitas de conchas. Outro exemplo é o pássaro-tecelão que faz e desfaz o ninho numa espécie de procura da perfeição da arquitetura do ninho. Ou seja, quando os recursos abundam e há energia extra, muitos seres vivos desenvolvem atividades para além das necessárias à sua sobrevivência;
- Quando surgiram as grandes cidades na Grécia e depois no Império Romano, os trabalhos começaram a diversificar-se, sendo que nelas os respetivos habitantes optavam por viver perto dos que exerciam as mesmas ocupações laborais. Construíam uma comunidade dentro da grande cidade, promovendo um sentido de pertença e identidade.
Este último aspeto evoluiu de tal forma que é bastante comum, após conhecermos alguém, ocorrer o seguinte:
- Qual é o seu nome?
- Fulano
- O que é que faz? Operador de gruas? Ah, então se calhar conhece o Beltrano que trabalha nisso.
A primeira pergunta é sobre identidade e a segunda também incide sobre identidade, mas através do que se faz em comunidade.
Sendo verdade que muita gente retira satisfação do seu trabalho é frequente ouvir o seguinte, no decurso das consultas: “Adoro o que faço, mas estou tão cansada que começo a perder o gosto e a vontade de trabalhar”. E, apesar de já ter falado noutra ocasião sobre o cansaço no geral e o que fazer quando se torna extremo, desta vez trata-se de integrar momentos que nos ajudam a descansar e a lidar com adversidades num comum dia de trabalho.
Quando a impotência se cruza com a irritação, isso é frustração
Trabalhar dá trabalho e descansar ocupa tempo: articular estas duas necessidades pode ser um desafio. E como só erra quem trabalha (e vive), podem surgir contratempos que geram irritação. A impossibilidade de concretizarmos alguma coisa porque está fora do nosso alcance coloca-nos perante forças opostas e frustra-nos. Estes momentos podem ser contornados, é certo, mas também podem acumular-se, desgastar-nos e minar a nossa capacidade de trabalho e qualidade de vida. E do stress continuado à perda de gosto pelo que fazemos é um saltinho.
Quanto mais parares, mais adiantas
Sugiro-lhe 4 estratégias para implementar na sua rotina extraídas do podcast de Ezra Klein em conversa com Gloria Mark, investigadora da função da atenção:
- Fazer pausas ao longo do dia;
- Fazer sestas;
- Caminhar pela natureza;
- Atividade física.
Nada de novo, não é? E o que é que a atenção tem a ver com isto?
O alcance da atenção
A função cognitiva da atenção é valiosíssima em termos de sobrevivência, aprendizagem, criatividade e na concretização de tarefas. Gloria Mark fez medições acerca do tempo que aguentamos sem nos distrair de uma tarefa e como isso se traduz nas nossas capacidades executivas. Concluiu que dada a atual sobrecarga de estimulação, o nosso “intervalo atencional” reduziu, ou seja, a capacidade de mantermos a nossa atenção na execução de tarefas diminuiu. Autointerrompemo-nos mais cedo e acrescentamos cada vez mais tarefas às nossas rotinas. Demoramos mais tempo a executá-las porque estamos cansados e a função biológica não pode ser ignorada ou forçada.
O que fazer?
- Fazer pausas breves (15 min) ao longo do dia: ouvir uma música, descer as escadas até à rua, respirar profundamente, espreguiçar-se, sair do local de trabalho e deambular um pouco, focar-se nas pessoas, tomar demoradamente um café. Convém não ser muito mais do que isto para não perder o ritmo de trabalho;
- Fazer sestas: ou, em alternativa, descobrir quando é que trabalha/produz melhor. É de manhã antes de todos acordarem ou depois, pela noite dentro? Compense com horas de sono, pois se é mais diurno terá de se deitar cedo e/ou dormir uma sesta. Se é notívago tem de compensar o sono na manhã seguinte. Pode optar por fazer algumas atividades no início da semana quando ainda sente os efeitos do fim-de-semana ou, diversamente, aproveitar as noites de 4.ª e 5.ª feiras ante a proximidade do fim de semana;
- Caminhar pela natureza ou pelo parque urbano mais perto de si. Não precisa de ser à beira da praia ou no Gerês; o importante é ter locais próximos para realizar estas caminhadas;
- Atividade física: não estou a falar de ginásio, mas de preferir as escadas ao elevador, andar a pé em pequenos trajetos em detrimento do Uber ou do carro pessoal.
Cada uma das estratégias anteriores contribui para o fenómeno designado por “pendulação”.
Ou seja: trabalho intenso e focado, atenção total, e alívio desse foco de atenção. Damos atenção, aliviamos a atenção. Torna-nos mais fortes porque aumentamos a capacidade de foco da atenção para concretizar tarefas e descansamos para saborear a conclusão das mesmas.
Antes de formular todos os argumentos que não lhe permitem adotar uma das estratégias acima referidas, escolha a que mais lhe agrada e encare como um desafio arranjar forma de a incluir na sua rotina. Pelo menos tente.
A sociedade atual, com tantos estímulos e solicitações, vai continuar a pedir a sua atenção e este assédio constante à sua função biológica da atenção tem um preço. A única pessoa que pode parar e pensar em como fazer o seu processo de “pendulação” é a própria.
Na capela dos ossos em Évora há um poema que pode dar um empurrão nessa decisão de cuidar do seu processo de pendulação:
“Aonde vais. caminhante acelerado ?
Pára… não prossigas mais avante:
Negócio, não tens mais importante.
Do que este à tua vista apresentado.
Recorda quantos desta vida tem passado,
Reflecte em que terás fim semelhante.
Que para meditar causa é bastante
Terem todos os mais nisto parado.
Pondera, que influído d’essa sorte
Entre negociações do mundo tantas.
Tão pouco consideras na da morte:
Porém, se os olhos aqui levantas.
Pára… porque em negócio deste porte,
Quanto mais Tu parares mais adiantas”