As mentiras que contamos a nós próprios

Ana Caetano // Abril 1, 2020
Partilhar

Todos mentimos, uns mais, outros menos, mas todos mentimos. Podemos mentir em pequenas coisas, como, por exemplo, “estou agora a sair de casa”, dizemos ao telefone a alguém que nos espera, enquanto estamos a entrar no chuveiro. Ou podemos mentir em grandes coisas, como, por exemplo, quando soltamos um “também te amo” automatizado porque não reunimos coragem para terminar uma relação onde já não amamos. 

Somos mentirosos e é bom que aceitemos essa verdade universal.

A mentira está presente em todas as relações, em todas as classes sociais, em todas as culturas, em todos momentos da história. 

É até sinal de inteligência numa criança ela começar a mentir cedo uma vez que significa que percebe que criou algo na sua mente que não existe na mente do outro. Ou seja, desenvolveu uma teoria da mente, em que consegue atribuir um estado mental diferente daquele que tem na cabeça à outra pessoa.

Mentir é vantajoso?

Olhemos para algumas vantagens da negação da realidade:

  • Aliviamos sofrimento aos outros, quando dizemos ao avô que a neta estava com muitos trabalhos na universidade e não pôde vir, quando na realidade ela preferiu sair com uns amigos;
  • Ganhamos tempo para outras tarefas, até porque temos andado a fazer tanta coisa que simplesmente não deu para entregar o relatório antes e, embora tenhamos uma noitada pela frente, o chefe não fica com má imagem nossa.

Sendo a mentira vantajosa, universal e humana, talvez seja um exagero a má reputação da mentira e o 8.º mandamento – “Não levantar falsos testemunhos” (nem de qualquer outro modo faltar à verdade ou difamar o próximo).

A grande questão da mentira é o contexto e as consequências.

Uma neta que vai todos os Domingos almoçar com o avô e, às vezes, até vai a casa dele por iniciativa própria, talvez justifique que minta piedosamente numa dada ocasião. Assim, poupa-se a relação entre neta e avô. Se, por outro lado, esta mentira é continuada, o avô pode aperceber-se dela sentindo mágoa e a neta aprende que não há limites na negação da realidade, minando a confiança nas relações que estabelece com os outros. No entanto… 

As piores mentiras são as que insistimos em contar a nós próprios.

Há vários tipos destas mentiras, mas destaco apenas três: assumimos a culpa de todo o mal que nos acontece, não nos responsabilizamos por nada na nossa vida, ou relacionamo-nos com as imagens que criamos das pessoas e não com as pessoas em si.

1. Acreditar que somos a razão de todo o mal que nos rodeia

Talvez tenhamos crescido num ambiente em que fomos constantemente acusados de sermos a origem de um mau casamento ou da perda de uma oportunidade de trabalho: “Se não tivesses nascido…”. Ouvimos tantas vezes a mentira que a sentimos como verdade. O sofrimento psicológico instala-se e, pela vida fora, vamos assumindo culpas e fazendo a reparação de atos e opções pelas quais não fomos responsáveis. E, assim, podemos acreditar que não temos valor aceitando, por exemplo, que o nosso parceiro amoroso nos diga continuadamente que ele não nos dá mais atenção porque nós também não a pedimos e quando pedimos “estamos a aborrecer com estas coisas”. Calamo-nos para não aborrecer, culpando-nos por sermos tão carentes, tão defeituosos, que nem sabemos como pedir amor. Ao mesmo tempo, e sem percebermos porquê, instala-se um buraco no peito que dói até quando se respira. Mas, insistimos em que a culpa é nossa, que somos na essência maus, imprestáveis e não merecedores de amor. E sofremos.

2. Não nos responsabilizarmos por nada na nossa vida

Outro ângulo da mentira numa relação surge ao culparmos sistematicamente os outros de todo o mal que nos rodeia, abdicando de qualquer responsabilidade e, por consequência, de poder pessoal na situação. Eis-nos em processos de vitimização naquele momento de um divórcio, descartando alguma informação aqui e ali, demonizando o Outro que não foi sensível às nossas necessidades, abandonando-nos numa situação difícil, procurando os detalhes que confirmam a nossa miséria. Entretanto, ignorámos as tentativas que esse mesmo companheiro fez ao longo de anos, tentando falar do que estava mal no casamento, pedindo para que algumas coisas mudassem porque não se sentia feliz.  É mais fácil dizer que é um traidor, não lhe dando uma segunda oportunidade na relação. E assim permanecemos na zanga, ignorando as nossas responsabilidades nas relações, questionando-nos porque é que temos tanto azar e só atraímos pessoas egoístas que não nos compreendem. A consequência desta mentira que contamos a nós próprios pode originar um catálogo de relações falhadas em que somos surpreendidos numa solidão que nos dói.

3. A idealização do Outro

O último aspeto de uma mentira que muitas vezes nos acompanha é a idealização do Outro. Conhecemos alguém que nos atrai, até nos apaixona. Não gostamos que essa pessoa seja assim tão caseira, mas em tudo o mais, apaixonamo-nos pela pessoa. Mais tarde, quando o encanto da paixão passa, começamos a implicar com o seu estilo caseiro e sua relutância em nos acompanhar a jantares e nas saídas de fins de semana. A implicância gera conflito, discussões continuadas e recusamo-nos a ver que a pessoa que está à nossa frente não mudou: ela já era assim, mas alimentámos a fantasia de que ia mudar. E a persistência desta pessoa em ser quem é desilude-nos, magoa-nos e não percebemos que nos apaixonamos pela imagem que projetamos nela.

A realidade é dolorosa, mas a negação é perigosa.”

Jon Frederickson (psicoterapeuta americano)

Seja qual for a mentira que alimentamos sobre nós e as nossas relações, protegem-nos de nos confrontarmos com quem somos: falíveis, responsabilizáveis e incompletos. Dói saber-nos menos do que aquilo que imaginamos que somos, mas traz alívio saber-nos humanos.

Ler mais

Copyright © 2023 Simply Flow. Todos os direitos reservados.

Este site utiliza cookies para melhorar a sua experiência. Aceitar Saber mais