“… o seu filho tem lesões cerebrais…,” disse a médica com um ar descontraído e um tom de voz casual.
Nesse dia o meu mundo desabou!
Como é que uma singela frase, com apenas seis palavras, que não levaram mais do que um segundo a articular, conseguiu tirar-me o tapete debaixo dos pés e virar o meu mundo ao contrário?
Num momento eu tinha o plano da vida para a felicidade prometida. Tinha-me licenciado, trabalhava na área para a qual me tinha formado, casei com o homem dos meus sonhos e estava a preparar o ninho em casa para a chegada do filhote.
Mas um segundo passou e as palavras foram ditas. Com elas, com aquelas singelas palavras, o meu plano falhou.
O mundo estava ao contrário. Aqui não havia plano. Era assustador. Só existíamos eu e aquele bebé de quatro meses, até então meu filho, mas que agora com lesões cerebrais era um perfeito estranho para mim.
Na minha cabeça, a palavra deficiente passava uma e outra vez.
A noite foi longa. O quarto sufocava. O bebé chorava. O choro persistiu e a minha inércia acompanhou. Eu estava de costas voltadas para o berço. Entretanto o choro parou. Pelo canto do olho vejo um enfermeiro a sair do quarto com aquele bebé nos braços.
Talvez ele, o bebé, tivesse sentido afeto e carinho de outra pessoa. Afeto e carinho que naquele momento eu não estava a conseguir dar. Talvez se tivesse sentido seguro naqueles braços firmes. Segurança que o meu corpo dormente não conseguia garantir. Talvez apenas tivesse fome ou frio. E o meu corpo não tinha leite e eu não tinha calor em mim para o aquecer. Talvez ele estivesse melhor com outra pessoa, qualquer pessoa, que não eu.
Afinal, ele era um bebé que ia precisar de cuidados especiais e eu era uma simples mulher que tentou ser mãe e falhou redondamente. Ele merecia melhor.
A noite chegou ao fim. Aquele bebé voltou ao berço. Já não chorava, apenas olhava fixamente para mim, com aqueles olhos pequeninos, castanhos e inquisitivos, a escrutinar-me a alma para exigir uma resposta à pergunta que eu não queria ouvir: “Onde estavas tu esta noite? Quando precisei de ti?”. Não tinha respostas para lhe dar. Olhava para ele e era um desconhecido, apenas um bebé, que me roubou o meu filho.
Nisto entra uma enfermeira, a enfermeira, a “nossa” enfermeira. Puxa de uma cadeira, senta-se à minha frente e apenas me pergunta: “O que mudou?”.
“TUDO!”, respondi-lhe eu, “Ele tem lesões cerebrais!”
Ela levantou-se, pegou naquele bebé, que continuava no quarto connosco, colocou-o nos meus braços e disse: “Este bebé é o mesmo de ontem, de anteontem, de há uma semana atrás, de há quatro meses atrás!” E continua: “A realidade não mudou, é só uma. Só mudou a informação que tem dela. Ele é o mesmo bebé! É o seu filho! É o Rodrigo.”
Uau! Que soco vindo do nada e que me deixou ko.
Abanou o suficiente para caírem novas lentes sobre os meus olhos. Olho para baixo e tinha o meu filho de novo nos meus braços. Agarrei-me a ele a chorar num pranto inconsolável, enquanto lhe pedia desculpa por o ter abandonado e lhe prometia amor incondicional para todo o sempre.
Este foi o meu ponto de viragem.
Ainda hoje me envergonho do que fiz naquela noite, naquele quarto de hospital, ao meu filho.
Mas ainda hoje, procuro sarar essa culpa, cumprindo a promessa que lhe fiz, a promessa do mindinho: não largamos quem amamos. Com ele, aprendi que o amor constrói mais amor.
Foi a partir daqui que a minha vida, até então perfeitamente planeada, segue por um trilho desconhecido, tortuoso e repleto de obstáculos. Eu sei. Percorri-o.
A partir deste momento aprendi que a vida não obedece a planos e por isso não exercemos qualquer controlo sobre ela. Passamos a vida a construir e a manter afetos com quem nos rodeia.
Como não controlamos a vida, às vezes, demasiadas vezes, perdemos os afetos. Eu perdi. Perdi o meu filho saudável na minha vida perfeitamente planeada. E depois fiz a minha escolha.
Escolhi aprender a reconstruir afetos com aquela criança que estava no meu colo. Assim que o fiz, recuperei o meu filho.
Desde então, que sei: A vida é demasiado preciosa para não ser bem vivida.
Se calhar é este o meu legado. Começou com um mau ADN, mas termina com uma mensagem: “Faz melhor já!” Não estejas à espera que a vida te aconteça. Faz acontecer na tua vida. E aí, saberás que estás no plano para a tua Felicidade.