Procura-se alma e paixão, mas com maneiras
Quando as crianças fazem birras não têm (sempre) razão; antes manifestam um melindre. Com ira, claro. E, de preferência, sem lágrimas. De forma convicta. E, de preferência, muito esganiçada. Nos “melhores dias”, com um ar “vermelho Ferrari”, mais ou menos inconfundível. E, quando há lugar a alguns “efeitos especiais”, lançando-se para o chão, esperneando, batendo com os braços e gritando. De preferência, muito, muito alto. Até se cansarem…
Seja como for, eu gosto das crianças que fazem birras!
Por quatro motivos. Em primeiro lugar, quem faz uma birra é capaz duma paixão. Toma-se por um fulgor que vem de dentro. Assume-o como seu. E, leva-o por diante com toda a transparência. Até que a voz lhe doa. Em, segundo lugar, quem faz uma birra, por mais que tenha consciência das figuras que faz, tem a noção que o “topo de gama” da sua fúria se esgota naquele impulso e nada mais. Não parte. Não agride. Nem insulta. Será, digamos assim, um tigre de papel. Em terceiro lugar, quem faz uma birra só pode ter dois pais com um certificado do Instituto Português da Qualidade. Do género: cumpre os requisitos indispensáveis para que seja considerado “produto de qualidade”. Porquê? Porque isso pressupõe que os pais não são nem frágeis o suficiente nem agressivos o quanto baste para dissuadirem, pela compaixão ou pelo medo, o vulcão de raiva que uma criança é capaz de pôr em movimento quando se sente contrariada. E, finalmente, só as crianças mimadas são capazes das melhores birras. Aquelas que se sentem “primeiras figuras” aos olhos dos pais. E, que, habitualmente, fazem um esgar contrafeito ou esboçam um desabafo parecido com um “tu não gostas de mim” que faz com que os pais, movidos a bondade, as acarinhem como quem lhes pede desculpa por todos os nãos aos quais não as conseguem poupar.
É claro que uma birra puxa pela cabeça quente com que todos os bons pais de coração grande vêm equipados. E, é verdade – sim! – que, depois dum período mais ou menos zen com o seu quê de meditação, em que apelam ao bom senso daquele ciclone em movimento (mas, certamente, tocados pela solidariedade que ele lhes merece), os pais gritam, esbracejam, praguejam e ameaçam como mais ninguém, com o seu popular “Ai é para ver quem é o mais teimoso?…” a servir de refrão. Mas, daí a falarmos da fase das birras, fará sentido?
Não existindo uma fase das birras o que é que as mães quererão dizer quando falam dela?
Que, depois de um encantamento sem fim, em que, de gracinha em gracinha, um bebé ganha espaço no coração dos pais e descobre o seu engenho quando se trata de os espevitar para qualquer “mostra que sabes mandar”, há uma altura em que uma criança faz birras por tudo e por nada. É claro que isso só é possível quando ela – que até certa altura espalhava o seu melhor charme, o seu “mau feitio” e o seu “mau génio” sem grandes repreensões e sem quaisquer coimas (e até merecia o olhar babado de que só os pais são capazes quando contemplam a inteligência, a determinação e a “muita personalidade” dos seus petizes) – passa a ser contrariada em relação aquilo que os pais entendem não poder mais autorizar. E, é aí que, na confusão de quem não percebe “onde é que pára a polícia” e onde é que os pais terão, entretanto, “batido com a cabeça”, para que se tenham moldado a um novo regime tributário, uma criança manifesta, repetidamente, o seu direito à indignação. Numa espécie de “greve de zelo” como bom filho. Ou seja, estamos a falar duma fase em que uma criança acaba por estar toda baralhada com as regras que lhe exigem. E, valha a verdade, onde os próprios pais correm o risco de, a espaços, nem sempre serem tão claros nem tão constantes como imaginam em relação àquilo que lhes passam a exigir. O que faz com que a fúria duma criança fique mais… “solta”.
Ainda assim, é engraçado ver como é que as crianças chegam à “fase das birras”.
De início, a propósito de um episódio que não é levado em atenção pelos pais, é natural que uma criança chore, com lágrimas, e de forma estridente. E, que repita essa fórmula, várias vezes. Com toda a gente a fazer uma espécie de revisão sobre os pontos dolorosos do seu pequeno corpo no sentido de descodificar as razões para tamanho sofrimento. “Será birra?”, pergunta o pai. “Não!! Que eu conheço o meu filho…”, responde a mãe. A seguir, e com a generosidade própria de uma alma imensa, é natural que uma criança passe a ter a “mão leve”. Ora com a ponta dos dedos (como quem diz: “vê lá, vê!…”), ora enchendo a mão e movendo-a como se ela tivesse um turbo. A seguir, quando até esses ímpetos lhe estão vedados, procurando, com delicadeza, o ângulo mais oportuno para os seus caninos e, em vez de um beijo repenicado, mordendo a perna de um incauto distraído. Para que, como vitória moral, se ficar por um “rosnar” de garganta, que pretende meter medo ao susto. Isto é, que ousa assustar quem mais a assusta: os pais! Infelizmente, com o resultado que faz com que toda a sua vaidade de outrora, quando os sentia a conviver com a sua “imensa personalidade”, se transforme num paraíso perdido.
Em resumo: o que todos esperamos é que as crianças aprendam com as birras a fazer a quadratura dum círculo.
Que as manifestem. Sempre! Com o furor dum trovão. Nos nossos melhores dias. Com a volúpia duma tempestade tropical. Quando estão com os avós. Mas, com maneiras! Até debaixo de água… De forma a que tenham alma e paixão sem que deixem de ser bem educadas. Quanto à “fase das birras”, ela voltará pela vida fora. De surpresa. Quase sem se querer. A não ser quando se é ou mãe ou pai, claro. Porque aí a “fase das birras” ataca mais vezes.