A culpa do prazer

Cláudia Morais // Fevereiro 9, 2020
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Às vezes, aquilo que nos dá mais prazer também traz um sentimento de culpa que nos corrói, que nos envergonha. De onde vem este sentimento? E que sentido fará?

Os sentimentos de culpa podem surgir quando fazemos escolhas que, de alguma maneira, vão contra aquilo que defendemos, os nossos próprios valores ou aquilo com que nos comprometemos. É isso que acontece quando, apesar de nos termos comprometido com uma dieta rigorosa, cedemos à tentação de cometer alguma “asneira”, por exemplo, mas também quando somos infiéis ou quando nos divorciamos. Ainda que estes sentimentos possam traduzir a nossa consciência e os nossos valores morais, de uma maneira geral, eles são infrutíferos, já que, não só não nos afastam das “tentações”, como podem até aumentar a nossa compulsão.

Perdido por cem, perdido por mil?

Quem é que nunca passou pela experiência de aproveitar a boleia dos sentimentos de culpa para insistir no erro/desvio? Interrompemos a dieta comendo batatas fritas e pensamos “Já que fiz isto, como também uma sobremesa hipercalórica”, como se o facto de nos termos desviado de um compromisso fosse a “prova” de quão más pessoas somos e, enquanto tal, fizesse todo o sentido que o erro se estendesse. Claro que, para quem está de fora, é fácil concluir que uma asneira faz consideravelmente menos estragos do que duas ou três. Para quem está de fora também é mais fácil assumir uma postura compassiva e reconhecer que um erro é só um erro, não faz de nós monstros ou más pessoas. Mas, quando nos “portamos mal”, é fácil sermos hipercríticos connosco e dessa hipercrítica pode resultar maior dificuldade em fazermos as escolhas certas. No final das contas, é uma questão de amor-próprio, de autocompaixão e de autocuidado.

Quando gostamos de nós e nos temos em boa conta, é mais fácil olhar para uma falha como um acontecimento relativamente comum e não como uma fatalidade. Quando nos sentimos seguros do nosso valor, olhamos para os nossos erros como episódios isolados que não nos definem, assumimos a nossa responsabilidade e voltamos mais rapidamente ao caminho com que nos tínhamos comprometido.

Mais: quando assumimos uma postura genuinamente autocompassiva, quando somos amáveis connosco, como seríamos com um bom amigo, alguns destes prazeres não chegam a ser vistos como erros. Se nos desviarmos do plano da dieta com que nos tínhamos comprometido talvez sejamos capazes de dizer a nós mesmos: “Saboreia sem culpas. Tens sido capaz de te manter firme e amanhã voltas a cumprir tudo à risca”. Não seria isso que diríamos a alguém de quem gostássemos? Claro que esta postura compassiva não equivale a inexistência de firmeza. Equivale, isso sim, a genuína bondade por oposição à hipercrítica, que só nos puxa para baixo.

Pelo contrário, quando a autoestima é baixa, é ainda mais fácil que os sentimentos de culpa exacerbem a busca por aquilo que nos dá prazer. Porque com as críticas vem invariavelmente a sensação de vazio, de insuficiência ou de desvalor. E isso abre espaço à busca daquilo que nos oferece a sensação imediata de gratificação.

A culpa do prazer sexual

Para algumas pessoas, a culpa não está apenas associada à falha de um compromisso. Se é verdade que os sentimentos de culpa podem aumentar – e muito – a probabilidade de uma traição emocional escalar para a traição física e sexual, também é certo que esses sentimentos podem surgir mesmo quando, à partida, não haja ninguém a ser traído.

Os sentimentos de culpa resultam invariavelmente de uma luta interna. Por um lado, há algo que temos muita vontade de fazer (porque sabemos que nos vai dar prazer) e, por outro, há um juízo de valor que nos trava. Para algumas pessoas, os juízos de valor estão associados à forma como foram educadas e que, de alguma maneira, fez com que interiorizassem a mensagem de que o prazer é algo “sujo” ou indigno. Nestes casos, ultrapassar os sentimentos de culpa pode envolver alguma coragem.

Quando crescemos a ouvir coisas como “As raparigas sérias não fazem certas coisas”, “Não toques aí que é feio” ou somos bombardeados com posições ultraconservadoras, é mais provável que associemos o prazer sexual a algo que não nos dignifica e que passemos a sentir vergonha por algo tão natural, tão humano. Como é fácil de calcular, nestes casos a luta interna é grande e, mesmo quando a pessoa cede à tentação, dificilmente o fará expressando de forma clara, autêntica e espontânea o próprio desejo.

No meu trabalho com casais tenho conhecido algumas histórias de vida profundamente marcadas por estes constrangimentos. Porque quando um dos membros do casal olha para a sexualidade e para o desejo como algo impuro, os sentimentos de culpa vão ser proporcionais ao prazer que a própria pessoa se impede de sentir. Porque quando uma das pessoas se sente condicionada na exploração do próprio desejo e do próprio prazer é mais provável que a outra se sinta indesejada, rejeitada e abandonada.

O que é o prazer culpado?

O prazer culpado resulta invariavelmente da luta entre duas vontades – por norma, da luta entre aquilo que nos apetece fazer e aquela que nos parece ser a escolha certa.

Às vezes, o prazer culpado surge em situações banais em que simplesmente estamos a ser demasiado duros ou exigentes connosco. Noutras alturas, surge associado a escolhas mais sérias, que terão impacto em áreas importantes da nossa vida, e está relacionado com o facto de não prestarmos a devida atenção aos nossos sentimentos e necessidades.

Quando procrastinamos, adiando tarefas importantes como o estudo para um exame ou a concretização de um relatório para o trabalho, cedendo à tentação de ver vários episódios da nossa série favorita, não estamos só a ser preguiçosos. Estamos, quase sempre, a ignorar que é o medo de falhar, de não estar à altura, que nos empurra para escolhas em que não tenhamos de nos confrontar com pensamentos e emoções desconfortáveis. Quando substituímos uma tarefa importante por uma que nos dá prazer, estamos, inconscientemente, a tentar anestesiar uma emoção que é difícil de gerir. O problema é que aquilo que nos dá prazer não tem o poder de apagar a importância do que fica por concretizar e, invariavelmente, surgem sentimentos de culpa.

Quanto mais atentos estivermos aos nossos sentimentos – não numa postura de hipervigilância ou de policiamento, mas, sim, numa postura de “atenção gentil” -, maior é a probabilidade de fazermos as nossas escolhas de forma livre, autêntica e sem culpas.

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