5 perguntas e respostas sobre violência emocional

Cláudia Morais // Março 6, 2018
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O que é que caracteriza uma relação abusiva? Quem são as vítimas? Quais são as características dos homens emocionalmente violentos? Por que é que é tão difícil para uma mulher libertar-se de um homem que a maltrate? É possível mudar?

“És magra demais. Tens as mamas muito grandes. O teu rabo é muito subido. A tua pele é demasiado branca.”

Aos olhos do marido, Susana tinha uma lista de defeitos infindável. Pelo menos, dentro de casa. Valia tudo para que continuasse a sentir que não estava à altura do companheiro. Curiosamente, entre amigos, Gabriel gabava-se dos atributos físicos da mulher. Gostava de falar de Susana como um troféu. Ter casado com uma mulher voluptuosa era, acima de tudo, um sinal do seu próprio valor, uma forma de se superiorizar perante os amigos. O que é que o levaria a ter estes comportamentos? Por que humilhava a mulher? E Susana? O que é que a impedia de reconhecer os abusos? Por que continuava numa relação marcada por críticas e humilhações que estavam claramente a afetar a sua autoestima?

Quando ouvimos falar de violência doméstica, mesmo que seja “só” emocional, é tentador fazer juízos de valor. “Porque é que ela não o deixa? Será que há mesmo violência? Talvez esteja a exagerar. Ele parece ser tão simpático e afável…”

Ignoramos quase sempre aquilo que acontece dentro de casa, desconhecemos a forma como estas relações abusivas enfraquecem as vítimas e apontamos o dedo sem darmos conta de que um dia podemos ser nós.

Enquanto psicóloga e terapeuta conjugal, falar sobre violência emocional sobre as mulheres* é falar sobre empoderamento. Quanto maior for o acesso a informação rigorosa, quanto mais soubermos sobre o que são (e o que não são) comportamentos abusivos, maior é a probabilidade de construirmos relações felizes e marcadas pelo respeito mútuo. Foi por isso que resolvi partilhar as perguntas que mais frequentemente me colocam sobre este assunto.

1. Quem são estas pessoas?

As vítimas de violência são pessoas “normais” – como eu e você. Pelo meu consultório já passaram médicas, advogadas, professoras, figuras públicas, mulheres que ganhavam muito mais dinheiro do que os maridos. A violência atravessa todas as classes sociais e profissionais. E, desengane-se se pensar que se tratam sempre de mulheres cuja autoestima já estava fragilizada antes do início da relação. Às vezes a autoestima só começa a decrescer por causa dos abusos, que podem surgir de forma muito subtil.

E, os homens com quem se relacionam? Terão alguma perturbação personalidade? Nem sempre. Na esmagadora maioria dos casos que tenho conhecido, não há nenhum problema de personalidade. Há, isso sim, um problema de valores, que leva ao desrespeito contínuo. Surpreendente, alguns dos homens emocionalmente mais violentos que conheci são pessoas simpáticas, sedutoras, cativantes. Na verdade, são tão autocentrados e têm tanta necessidade de controlar a imagem que transmitem aos outros que se esforçam muito para alimentar uma imagem pública próxima da perfeição. É também por isso que muitas mulheres têm dificuldade em conseguir que familiares e amigos acreditem nos seus desabafos.

2. Porque é que um homem é emocionalmente violento?

Porque pode. Em quase todas estas histórias há um elemento comum: há um momento a partir do qual o namorado ou o marido interioriza que a mulher está tão envolvida que já não há o risco de a perder. Às vezes é uma situação de desemprego e dependência financeira, a perda de um familiar e a fragilidade associada, o nascimento de um filho ou a simples verbalização “Já não viveria sem ti”. O abusador percebe que pode tudo, inclusive desrespeitar a mulher. Num dia pergunta “Não vais vestida dessa maneira, pois não?” e dá conta de que, apesar do ar surpreso ou de reprovação, não há um travão para esta forma de controlo. Noutro dia o controlo surge sob a forma de chantagem emocional: “Se tu gostasses mesmo de mim, não ias a essa festa”. E, daí até que haja formas, mais ou menos, subtis de humilhação, deterioração da autoestima da vítima e isolamento em relação à sua rede de suporte pode ser um instante.

Boa parte dos abusadores que tenho conhecido são pessoas inseguras, incapazes de lidar com as suas fragilidades e que exercem poder sobre a pessoa que está ao seu lado para se sentirem melhor consigo mesmos. É como se de cada vez que exercem estas formas de controlo, se sentissem gratificados.

Ao fim de algum tempo, quase todas as relações abusivas se assemelham a uma bússola: está a ver a forma como o ponteiro de uma bússola está em constante sintonia com o magnetismo da terra? É assim que uma vítima de violência emocional é levada a comportar-se: a manipulação, a chantagem, as críticas e todas as outras formas de violência colocam-na numa posição de hipervigilância, sempre preocupada em agradar, em corresponder às necessidades do companheiro ou, pior, em fazer o que estiver ao seu alcance para que ele não se zangue.

3. Como é que elas se deixam enganar?

Em quase todas as relações abusivas há períodos de lua-de-mel, caracterizados por aparente harmonia e cumplicidade. E, muitas vezes, nestes períodos não há fingimento e a pessoa que pratica os abusos faz com que a vítima se sinta genuinamente amada. Porque é que isto acontece? Costumo dizer que a maior parte dos abusadores elaboram mentalmente um guião para a vida a dois. Como se se tratasse de um filme, imaginam como é que a pessoa que está ao seu lado deve vestir-se, como é que deve comportar-se, o que é que deve dizer. Quando corre tudo “bem”, isto é, como o abusador imaginou, a vida a dois pode assemelhar-se à normalidade de uma relação feliz. Mas, basta que a mulher se desvie deste guião, sendo quem é, com todos os seus sentimentos, escolhas e interesses, para que haja críticas, manipulações, chantagens ou explosões.

À medida que o tempo passa, o abusador vai encontrando formas mais ou menos subtis de colocar toda a culpa nos ombros da vítima. Se a mulher quiser sair com as amigas, está a ser “egoísta e a querer fazer vida de solteira”. Se usar minissaia, é porque anda “enrolada com algum colega de trabalho”. Se o marido chegar atrasado ao trabalho, a culpa é da mulher “porque está sempre a arranjar a problemas e a criar instabilidade”. Se os filhos se portam mal, a culpa também é dela “porque é um mau exemplo”, “porque é uma péssima mãe”.

Grão a grão, a culpa, o medo e a obrigação vão servindo de combustível para que os abusos se perpetuem. A vítima habitua-se a desvalorizar os próprios sentimentos – habitua-se a sentir aquilo que o abusador diz que deve sentir. É por isso que ouço tantas mulheres dizerem: “Doutora, se calhar sou eu que sou demasiado sensível”.

4. O que é que (não) é abuso?

Se o marido se esquecer do aniversário de casamento ou se se esquecer de comemorar o dia dos namorados, isso não é abuso. A mulher pode sentir-se triste, ignorada, mas, nestes casos, a intenção não é exercer controlo. Se o marido disser “Não gosto de te ver com esse vestido”, respeitando, ainda assim, que a mulher tenha uma opinião diferente, isso não é abuso. Se o marido disser “Sinto-me inseguro quando te vejo a conversar com o teu colega”, sem tentar impor qualquer afastamento, não está a desrespeitar a mulher. Se o marido se recusar a ir ao almoço com a família da mulher por se sentir cansado, ela tem o direito de sentir triste, mas isso também não é uma forma de abuso.

Há desrespeito sempre que houver desconsideração pelos sentimentos da mulher, desprezo, chantagem emocional, intimidação, explosões, ameaças, acusações infundadas, obrigação de satisfazer as necessidades sexuais do abusador e todas as tentativas de controlo.

5. É possível mudar?

Em mais de 17 anos, nunca conheci uma mulher que tivesse conseguido mudar o companheiro, mas há homens que mudam. Se é verdade que, como referi antes, os abusos acontecem porque, em algum momento, o abusador percebeu que podia comportar-se de forma desrespeitosa, a experiência mostra-me que a mudança só costuma acontecer se o abusador perceber que tem de mudar. Isto é, quando a mulher aprende a reconhecer os abusos e assume uma postura de tolerância zero, impondo a mudança. Não me interprete mal: em nenhum momento quero correr o risco de responsabilizar a vítima pela manutenção dos abusos. A responsabilidade é sempre de quem os pratica. Mas, à medida que as mulheres com quem trabalho recuperam a autoestima e se reaproximam da sua rede de suporte, sentem-se progressivamente mais fortes e capazes de dizer “Basta!” ou “Assim, não!” a cada tentativa de controlo.

*Há homens que são vítimas de violência emocional. Na minha prática clínica, noventa por cento das vítimas são mulheres.

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