O “lixo” é uma invenção humana
Na natureza e no seu sistema circular, a noção de “lixo” não existe, nada é descartado ou desperdiçado. Tudo se aproveita, tudo se transforma: as folhas que caem no Outono, os frutos amadurecidos pelo tempo que sucumbem e se acumulam no solo, as sementes que voam e atravessam distâncias, decompõem-se e voltam a ser vida.
O “lixo” é uma invenção humana, fruto de uma sociedade consumista, que extrai recursos e produz mais do que aquilo de que efetivamente precisa. Acumulamos objetos inúteis, descartando, enterrando e queimando esses mesmos objetos depois de os transformarmos rapidamente em resíduos. Esta sociedade linear do “deita fora” gerou esta crise de lixo que temos hoje entre mãos e que não tem fronteiras.
A sustentabilidade do nosso planeta vai, obviamente, muito para além da questão dos resíduos e da adoção de um estilo de vida low waste, mas reduzir a nossa produção individual de resíduos — consumindo menos, consumindo melhor, de forma mais responsável — é essencial para mitigar o impacto desses mesmos resíduos no ambiente, na nossa saúde e na saúde do planeta. Não é a única via, mas é uma via importante.
O “mantra” dos R
Antes de avançarmos para as dicas práticas, partilho uma metodologia que o vai ajudar e inspirar. Desenvolvido por Bea Johnson(1), o modelo dos “R” é simples, mas revolucionário, baseando-se em cinco passos fáceis. Faça dele o seu “mantra” para iniciar e guiar a mudança.
“Recuse aquilo de que não precisa; reduza aquilo de que precisa; reutilize aquilo que consumir; recicle o que não puder recusar, reduzir ou reutilizar; e composte tudo o resto.”
Estes passos devem ser dados nesta ordem e atuam simultaneamente ao nível da prevenção dos resíduos (primeiro e segundo), do consumo mais consciente (terceiro) e do processamento do desperdício (quarto e quinto).
Tendo em atenção estes “R”, aqui ficam 5 pequenos gestos, com grande impacto:
1. Faça uma auditoria ao seu caixote do lixo
Para reduzir o que quer que seja, é fundamental conhecermos bem o nosso ponto de partida e perceber a situação “real”.
Estamos tão habituados a descartar, sem pensar, num gesto automático e rotineiro, a guardar o lixo em sacos escuros e opacos, e a colocá-los depois em ecopontos subterrâneos, que, muitas vezes, não temos noção (inclusivamente visual) da quantidade efetiva de resíduos que geramos. O facto de todo o processo se desenrolar longe da vista leva-nos a permanecer numa espécie de “alienação feliz”, acreditando que deitámos efetivamente “fora” o desperdício e que, como tal, deixa de ser responsabilidade nossa. “Fora”? Onde está o “fora”? A verdade é que o “fora” não existe.
Depois da “radiografia” ao nosso caixote do lixo, é fácil perceber quais são os itens que mais contribuem para a produção de resíduos lá em casa e procurar alternativas mais ecológicas.
2. Planifique bem as compras e privilegie o granel
Faça sempre uma lista de compras com antecedência, em função das reais necessidades e das refeições que vai fazer. Verifique sempre antes a despensa. Tenha em conta as quantidades que gasta e com que regularidade. Compre mais vezes e menos quantidades.
Quando opta por comprar a granel, está, por um lado, a recusar embalagens desnecessárias (leve os seus próprios recipientes e sacos) e, por outro, a consumir de forma mais responsável, adquirindo somente as doses certas e combatendo o desperdício alimentar.
3. Prolongue a vida dos alimentos, conservando-os e acondicionando-os corretamente
Na hora de comprar, dê preferência aos alimentos da estação, de preferência locais (quando compramos alimentos fora da estação, estes, muitas vezes, têm de ser importados e/ou congelados; fazem um longo percurso — aumentando a sua pegada de carbono — até chegar a nossa casa e o seu tempo de preservação é menor). Em casa, acondicione-os corretamente. Elimine a película aderente e reutilize contentores, frascos, taças e panos encerados.
4. Aproveite ao máximo os alimentos e os restos
Recupere as antigas tradições e receitas das avós: nada como um bom caldo de legumes feito com os talos e ramos dos vegetais; as cascas de algumas frutas servem para fazer infusões bem aromáticas; as sementes podem ser tostadas no forno ou usadas para fazer bebida vegetal; o pão antigo ressuscita sob a forma de torradas; legumes murchos e tristes transformam-se numa salada vibrante; a fruta mais madura dá para fazer compotas, tartes.
O frigorífico é um grande aliado numa cozinha sem desperdício. Guarde no congelador, para mais tarde usar (fora da estação, por exemplo), fruta madura, legumes e ervas aromáticas em risco de murchar (picar e congelar nas cuvetes de gelo com azeite), leguminosas já demolhadas, pão que passou do prazo já fatiado, cascas para fazer caldo, frutos vermelhos da época e outra fruta sazonal, tomate e molho de tomate, polpa de leite de frutos secos; enfim, tudo o que estiver em risco de vida pode ser reanimado graças a este poderoso eletrodoméstico.
Caso não consiga aproveitar tudo, não coloque no lixo indiferenciado. Doe os seus resíduos orgânicos através da aplicação ShareWaste ou experimente a compostagem caseira.
5. Faça os seus próprios produtos
É frequente termos em casa um armário a abarrotar de detergentes de limpeza ou de produtos de beleza. E a quantidade de embalagens que acumulamos nesses recantos? A publicidade e as marcas fizeram-nos acreditar que para cada situação, ou área, ou parte da casa há um produto específico, e nós acumulamos embalagem sobre embalagem, esquecendo que, muitas vezes, o princípio ativo é o mesmo em tantos deles. Muitos dos produtos de limpeza têm também microplásticos, que acabam por, através das vias de saneamento, ir parar aos oceanos. Há alternativas caseiras viáveis (e muito mais económicas!), cuja eficácia já foi (a)testada e comprovada pela sabedoria dos nossos avós. Mais, estas receitas são feitas a partir dos ingredientes da despensa. É possível ter só um ou dois produtos multifuncionais e reduzir por completo a quantidade de resíduos que geramos. Para quem não tem tempo ou simplesmente não quer fazer em casa os seus produtos de limpeza, há cada vez mais marcas ecológicas, certificadas, a granel ou com embalagens conscientes e low waste.
A revolução começa em cada um de nós e em nossas casas.
Reduzir o desperdício é, antes de mais, reduzir o consumo e olhar para os recursos que já temos e aproveitá-los da melhor maneira. A revolução começa em cada um de nós e em nossas casas. Com passos pequeninos. Podemos nunca chegar ao zero desperdício, mas vale a pena tentar. É essa a força da utopia. Não interessa por onde começa, como começa, o importante é mesmo isso: começar. Porque, como diz Miguel Torga: “o que importa é partir, não é chegar”. Comece já. Vamos juntos!
Nota bibliográfica:
(1) Johnson, Bea, “Desperdício Zero”, Lisboa, Editorial Presença, 2017
Nota: Fotografia por Gustavo Figueiredo